Violência de gênero

Mulheres cobram mais acesso a políticas públicas do Governo do Distrito Federal

Entrevistadas relatam ao Correio que não sabem como pedir ajuda, apesar de o GDF oferecer programas e projetos de apoio e de proteção. Especialistas apontam maneiras de tornar as medidas mais eficazes

Além de equipamentos públicos, é preciso que as estruturas abranjam, sobretudo, os territórios periféricos mais distantes -  (crédito: Caio Gomez)
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Além de equipamentos públicos, é preciso que as estruturas abranjam, sobretudo, os territórios periféricos mais distantes - (crédito: Caio Gomez)

Mais conscientização em espaços públicos acerca da violência contra a mulher, fomento à independência financeira àquelas que estão em situação de vulnerabilidade, ampliação de vagões exclusivos e profissionais capacitados para atender e orientar vítimas de abuso. Esses são alguns dos desejos daquelas que ainda são vítimas da misoginia diariamente. Ao Correio, o Governo do Distrito Federal (GDF) destacou que trabalha o tema de forma interseccional. Especialistas na área, no entanto, sinalizaram que ainda faltam políticas públicas na capital do país.  

Segundo o GDF, no âmbito da violência de gênero, as políticas estatais em vigor funcionam, principalmente, por meio da Secretaria de Justiça e Cidadania do Distrito Federal (Sejus-DF), da Secretaria de Estado da Mulher e da Defensoria Pública do DF (DPDF). 

Às vítimas de violência ou em vulnerabilidade social, a Sejus oferece suporte por meio do Programa Direito Delas, conduzido pela Subsecretaria de Apoio às Vítimas de Violência (SUBAV). A medida é responsável por disponibilizar atendimento social, psicológico e jurídico para as vítimas diretas e seus familiares. O programa, que conta atualmente com 11 núcleos de atendimentos, oferece capacitação profissional e fomento ao empreendedorismo. 

A rede de acolhimento da SMDF tem nove Espaços Acolher — unidades especializadas no acompanhamento multidisciplinar de homens e mulheres envolvidos em casos de violência doméstica e familiar contra mulheres; uma Casa Abrigo  — que acolhe mulheres em situação de violência sob grave risco de vida e seus filhos menores de 12 anos; e uma Casa da Mulher Brasileira — que concentra serviços especializados e multidisciplinares para o atendimento às mulheres em situação de violência (outras quatro unidades estão em construção). Há, também, três Centros Especializados de Atendimento às Mulheres (CEAMs) e seis Comitês de Proteção à Mulher. 

Ao avaliar as iniciativas, Lisandra Arantes, advogada especialista na atuação com a perspectiva de gênero e defesa de mulheres, declarou que não é possível afirmar que as políticas estatais são suficientes, uma vez que o número elevado de ocorrências aponta para outro lado. A especialista analisou que, além de equipamentos públicos, é preciso que as estruturas abranjam, sobretudo, os territórios periféricos mais distantes. 

Refém do medo

A operadora de cobrança Dynoélia Cristina Damasceno, 26 anos, sentiu na pele a dor da violência contra a mulher — viu sua tia, de 23 anos, ser vítima de feminicídio em Santa Maria, onde mora. Desde então, vive assombrada pelas marcas de ver alguém que amava ser morta simplesmente por ser mulher. À época, a tia foi estuprada e teve a garganta cortada por um vizinho que residia no mesmo lote em que ela morava.

 Dynoélia Cristina Damasceno carrega a angústia de ter perdido a tia para o feminicídio. Desde então, vive à sombra do medo
Dynoélia Cristina perdeu a tia para o feminicídio (foto: Letícia Guedes CB DA Press)

Perguntada sobre as políticas públicas implementadas ao longo de 13 anos depois do crime, Dynóelia afirmou considerar o cenário no Distrito Federal pior do que era. “A segurança, infelizmente, é precária. O homem que fez isso com a minha tia foi preso somente seis anos depois do crime. Eu fui a única a ver o corpo dela e nunca tive acompanhamento psicológico. Infelizmente, ela é um exemplo de que a gente não está segura nem em casa

Isabel Freitas, assessora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), apontou que a violência contra a mulher é um fenômeno social antigo. "Está alicerçado numa ideia de inferioridade e desigualdade. É preciso combater, em totalidade, toda a estrutura que promove e calcifica a ideia de que a mulher é inferior e de que mulheres negras, indígenas, trabalhadoras rurais e moradoras de periferia são mais inferiores."

Simone Oliveira, 35, auxiliar de pedagogia, mora no Entorno do DF, mas trabalha no centro da capital. Todos os dias, passa cerca de quatro horas no transporte público, faz trajetos a pé e circula, sozinha, por lugares de alta aglomeração. “Somos observadas o tempo todo pelos homens e, no transporte público, por exemplo, os motoristas e cobradores não têm treinamento para nos ajudar, apenas ignoram e debocham, a partir daí, nos sentimos desencorajadas a pedir ajuda”, reclamou.

"Não adianta esperar vias de fatos ou feminicídios para oferecer apoio às família", disse Simone Oliveira
Simone Oliveira diz que o apoio deve chegar antes da violência (foto: Letícia Guedes CB DA Press)

Quando ouviu da reportagem as iniciativas existentes no DF de apoio às vítimas de violência, declarou que só conhecia a Lei Maria da Penha. “Não adianta criar medidas e não tirar do papel, não divulgar. Não adianta esperar feminicídios ocorrerem para oferecer apoio às famílias”, destacou. 

Damiana Neto, fundadora da ONG Ação de Mulheres pela Equidade – AME, avaliou que, em termos de estruturas voltadas às vítimas de violência, há locais formais constituídos para prestar apoio, mas ressaltou que há muito para discutir. "Para quem é essa rede de proteção e onde está localizada? Os profissionais que atendem estão capacitados ou replicam violências? É fácil acessar os serviços? Pelos relatos que recebemos das protegidas em nossa organização, o serviço não acolhe, e ainda é um violador de direitos."

A especialista acredita que faltam informações para a comunidade; comprometimento do governo; punição a quem não presta um serviço de qualidade; formação a quem atua nesse serviço; e recursos humanos e materiais nos equipamentos de políticas públicas. "Há relatos de falta de servidores e as estruturas, apesar de existirem, são precárias e fragilizam a assistência social no DF", disse. 

Todas as facetas 

Mulher e mãe de duas adolescentes, a empresária Fabiana Bonfim, 44 anos, mora há 15 no Sudoeste e sente-se insegura vivendo no Distrito Federal. Ela reclamou, sobretudo, da falta de políticas públicas voltadas ao transporte seguro para mulheres. Apressada, não queria conceder entrevista porque estava indo buscar uma de suas filhas na escola. “Todos os dias são assim. Não deixo elas irem sozinhas no transporte público, porque tenho receio. Se fossem meninos, eu até me sentiria mais tranquila. Como também não tenho coragem de deixar que viajem sozinhas em carros de aplicativo”, comentou.

A empresária Fabiana Bonfim acredita que falta divulgação das políticas já existentes
Fabiana Bonfim acredita que falta divulgação das políticas (foto: Letícia Guedes CB DA Press)

Fabiana acredita, também, que faltam divulgações acerca das políticas já existentes. “Vez ou outra vejo algumas propagandas na televisão, mas acho que não alcançam todas as mulheres.” Para ela, o cenário ideal ainda é um sonho distante. 

A assessora do Cfemea Isabel Freitas destacou que a atuação frente ao problema deve ser integrada, envolvendo saúde pública e fomento a independência econômica dessas mulheres. "As vítimas atendidas pelo Cfemea na Cidade Estrutural alegam que os programas de geração de renda não são suficientes para gerar autonomia às mulheres periféricas."

"Quando a violência chega à delegacia, é o atestado de que o Estado fracassou, que a política pública fracassou, por não conseguir criar mecanismos de enfrentar a questão no cotidiano. É preciso conectar as políticas públicas e elaborar uma ampla campanha. Brasília é uma cidade altamente desigual e essa violência precisa ser enfrentada em conjunto, por todo mundo e com responsabilidade", disse Isabel. 

Além do enfrentamento 

A fisioterapeuta Karen Dias, 42 anos, é moradora da Octogonal, mas vai todos os dias ao Setor Hospitalar Sul para trabalhar. Ela acredita que somente as políticas de enfrentamento não são suficientes e avalia que falta um trabalho focado na prevenção. “Acho que iniciativas pensando na segurança antes do crime acontecer seriam válidas e melhorariam os índices, principalmente de feminicídio, que aumentam dia após dia."

Karen acredita que é preciso trabalhar na prevenção, antes de qualquer coisa
Karen Dias afirma que é preciso trabalhar na prevenção (foto: Letícia Guedes CB DA Press)

Para Leila Brant Assaf, gestora do Instituto de Desenvolvimento Humano Umanizzare, além de políticas públicas, é essencial investir em educação e conscientização contínua para que a busca pela equidade de gênero não se restrinja ao mês de março, quando é celebrado o Dia Internacional da Mulher. “Isso inclui a inserção de temas sobre igualdade de gênero nos currículos escolares, a promoção de capacitações em empresas, escolas e comunidades, bem como o estímulo à mídia para tratar essas pautas de forma constante.”

A gestora refletiu que não basta receber treinamento técnico, é preciso que os profissionais envolvidos se sensibilizem e enxerguem a dor das mulheres atingidas, colocando-se em posição de empatia, longe de preconceitos. “Somente assim, o profissional  poderá atuar de forma humanizada e eficiente, garantindo acolhimento digno e acesso real à Justiça e proteção.” 

Adalgiza Maria Aguiar, promotora de Justiça e coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT), avaliou que há avanços, mas que há a necessidade de ampliação e aperfeiçoamento nas políticas para que as vítimas não sejam atendidas, e depois caiam em sofrimento outra vez.

"No eixo da prevenção, o MP tem atuado nas medidas de conscientização para além do mês de março, fazendo refletir sobre quais são as raízes da violência e analisar as motivações culturais que, infelizmente, existem", apontou a promotora. 

Políticas públicas para elas

Sejus-DF 

- Programa Direito Delas — atendimento social, psicológico e jurídico às vítimas diretas e familiares. Oferece capacitação profissional e fomento ao empreendedorismo, para promover autonomia e independência. Conta com 11 núcleos de atendimentos: Brasília, Ceilândia, Estrutural, Gama, Guará, Itapoã, Paranoá, Planaltina, Recanto das Emas, Samambaia e São Sebastião. Há um número que funciona 24h para acolhimento: (61) 98382-0130.

- Nasce uma Estrela — curso gratuito para gestantes e mães de recém-nascidos, com orientações sobre cuidados com o bebê, amamentação e bem-estar no pós-parto; e Protagonista da Casa — curso prático voltado para diaristas, empregadas domésticas e donas de casa que ensina técnicas de organização e limpeza, contribuindo para o aumento da renda. Os ensinamentos são oferecidos nas edições do GDF Mais Perto do Cidadão, que ocorre duas vezes por mês por diversas regiões administrativas. Basta acessar o site da Sejus-DF para conferir as datas e locais de cada edição. 
Secretaria da Mulher
- Acolher Eles e Elas — beneficia crianças e adolescentes órfãos de vítimas de feminicídio com o benefício de um salário mínimo e atendimentos psicossociais. As famílias podem entrar em contato pelos telefones (61) 3330-3118 e (61) 3330-3105.

- Aluguel Social para Mulheres Vítimas de Violência Doméstica — o benefício de R$ 600 mensais é concedido inicialmente por seis meses, com possibilidade de prorrogação. Informações: 3330-3105.

- Nove Espaços Acolher — Plano Piloto, Brazlândia, Gama, Paranoá, Planaltina, Santa Maria, Sobradinho, Samambaia, Ceilândia. 

- Uma Casa Abrigo (Entrada mediante encaminhamento da delegacia) 

- Uma Casa da Mulher Brasileira em Ceilândia e outras quatro unidades em construção. Número para acolhimento e triagem: (61) 3371-2637. Funcionamento é 24h.

- Três Centros Especializados de Atendimento às Mulheres (CEAMs) — 102 SUL (PLANO PILOTO), CEAM – II – PLANALTINA e CEAM IV. Os endereços estão disponíveis no site da pasta e podem ser acessados 24h, sem necessidade de agendamento. Funcionamento segue horário comercial, das 8h às 18h.

- Seis Comitês de Proteção à Mulher (Itapoã, Ceilândia, Lago Norte, Estrutural, Sobradinho e Águas Claras). Os endereços estão disponíveis no site da Secretaria da Mulher e podem ser acessados 24h, sem necessidade de agendamento. Funcionamento segue horário comercial, das 8h às 18h.

- Programa Movimente — facilita o acesso das mulheres a serviços públicos voltados ao empreendedorismo, promovendo a autonomia econômica. Veja mais informações no site da Secretaria da Mulher. 

- ACTs — a SMDF também formaliza Acordos de Cooperação Técnicas com o governo federal e órgãos do Judiciário e do Legislativo para fortalecer a política de enfrentamento à violência contra as mulheres. O acordo determina que as vagas incluam mulheres trans, travestis, quilombolas, indígenas, refugiadas e outras possibilidades do gênero feminino. Atualmente, a pasta tem parceria com 11 ACTs, com 17 órgãos, com 230 mulheres empregadas em locais como STJ, Senado Federal e Câmara Legislativa do DF.

Defensoria Pública: 

- Projeto Dia da Mulher — oferece serviços em rede para atender às mulheres em situação de vulnerabilidade. Realizado toda primeira segunda-feira do mês, das 8h às 17h, no Setor Comercial Norte, Quadra 1, Edifício Rossi Esplanada Business (Nuclão), próximo ao Hospital Regional da Asa Norte (Hran).

- Núcleo de Assistência Jurídica de Promoção e Defesa das Mulheres (Nudem) — promove a defesa dos interesses das mulheres, especialmente as vítimas de violência de gênero. O núcleo também atua na assistência jurídica individual das vítimas de violência doméstica. Contato pelos telefones (61) 3465-8200 ou (61) 9 8272-5123

- Central de Relacionamento com os Cidadãos da DPDF (CRC/DPDF) — possui um ramal exclusivo para o atendimento e o acolhimento de mulheres vítimas de violência doméstica. Não se trata de um canal de denúncia, mas de escuta dessas mulheres. Os atendimentos são realizados por servidoras capacitadas para acolher as vítimas da melhor forma possível. A ligação é gratuita, basta ligar 129 - dígito 2.

- Projeto Volte a Sorrir — promove o tratamento e o acolhimento de mulheres vítimas de violência doméstica que sofreram danos bucais, restaurando a autoestima e a dignidade delas. As instituições recepcionam e acolhen as mulheres por meio da Subsecretaria de Atividade Psicossocial (Suap). Os telefones de contato são: (61) 2196-4468 ou (61) 2196-4507.

 

  • Karen Dias afirma que é preciso trabalhar na prevenção
    Karen Dias afirma que é preciso trabalhar na prevenção Foto: Letícia Guedes CB DA Press
  • Simone Oliveira diz que o apoio deve chegar antes da violência
    Simone Oliveira diz que o apoio deve chegar antes da violência Foto: Letícia Guedes CB DA Press
  •  Dynoélia Cristina perdeu a tia para o feminicídio
    Dynoélia Cristina perdeu a tia para o feminicídio Foto: Letícia Guedes CB DA Press
  • Fabiana Bonfim acredita que falta divulgação das políticas
    Fabiana Bonfim acredita que falta divulgação das políticas Foto: Letícia Guedes CB DA Press
Letícia Guedes
postado em 15/03/2025 05:00 / atualizado em 15/03/2025 09:33