Dados da plataforma DataJud, painel de estatísticas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mostram que, no ano passado, 27.603 processos relacionados à violência doméstica contra mulheres foram protocolados no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT). O número representa uma média de 75 processos por dia, o que é considerado alarmante para especialistas ouvidos pelo Correio.
O levantamento causa preocupação, sobretudo quando comparado aos anos de 2020 a 2023, em que os dados, já considerados elevados, foram inferiores aos de 2024. Em 2023, por exemplo, o levantamento do DataJud registrou média diária de 70 processos, totalizando 25.896 ações. Em 2022, a média foi de 60 casos por dia, somando 22.030 processos. Já em 2021, foram 21.806 registros, com uma média de 59 processos diários, enquanto que em 2020 esse número foi de 55, correspondente a 20.130 ações. Os dados representam processos judiciais e pode haver casos em que uma mulher possa ter sido vítima de violência doméstica por mais de uma vez.
Para a especialista em direito da mulher e de gênero, Cristina Alves Tubino, ainda há um fator importante: há muitas mulheres que sequer denunciam, ou seja, o número poderia ser bem maior. "Ao mesmo tempo que é inequívoco que houve um aumento no número de mulheres que denunciam seus agressores, houve, claramente, crescimento nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher", pondera Cristina.
Falta de informação
"Infelizmente, muitas mulheres não têm conhecimento de onde buscar ajuda. Precisamos de campanhas mais efetivas: televisão, em meios de transporte. Não apenas dizendo que violência é crime, mas informando à mulher quais são os meios que ela tem de proteção. Onde pedir ajuda, quais as medidas que pode requerer. Por outro lado, é fundamental que as autoridades policiais, especialmente as que fazem atendimento direto das vítimas, tenham a capacitação para receber e acolher mulheres vítimas de violência doméstica. De nada adianta uma mulher lutar e romper um ciclo de violência e, ao buscar apoio, ser desacreditada, questionada ou destratada", pontua a especialista.
Na mesma perspectiva, a professora de direito penal do Ceub, Carolina Costa explica que uma nova política adotada pelo TJ trata medidas protetivas de urgência e inquéritos policiais de forma separada, o que pode justificar um número elevado — há casos em que é feito apenas o registro de ocorrência e outros em que ocorre somente a solicitação da protetiva. "Hoje, há diversos canais disponíveis, como o Disque 180, a Polícia Militar, a Polícia Civil, o Ministério Público e a Defensoria Pública, que estão preparados para receber relatos e oferecer encaminhamento. No entanto, o maior desafio está na proteção da mulher após o relato", avalia Carolina.
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Desafios
O aumento no número de processos judiciais relacionados à violência contra mulheres pode ser reflexo de uma maior disposição das vítimas em denunciar, impulsionada pela criação de canais de denúncia, deferimento de medidas protetivas e atuação do governo. É o que avalia o advogado garantista e especialista em direito da mulher, Robledo Arthur, que cita a importância das varas e delegacias especializadas da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) para o registro desses casos.
Para o especialista, é fundamental investir em campanhas de conscientização que esclareçam às vítimas que a violência sofrida é um crime e que existem formas de buscar proteção. "É essencial que o Estado e o setor privado reconheçam que esse tema vai além de números. Trata-se de garantir o direito humano à dignidade e à vida. Campanhas bem estruturadas podem mudar realidades, fazendo as vítimas perceberem que não estão sozinhas e que há amparo jurídico e social", explica Robledo.
O advogado acrescenta que os desafios vão além do medo das vítimas de serem julgadas ou enfrentarem consequências financeiras, sociais e emocionais. Muitas mulheres, especialmente as de classes economicamente vulneráveis, permanecem invisibilizadas. "É um desafio para a sociedade atual desconstruir o machismo e a misoginia, combustíveis para essa violência. Essa é uma luta pela preservação da vida, pela dignidade humana", conclui.
De acordo com a Secretaria da Mulher, a principal política da pasta é o serviço de acolhimento e acompanhamento de mulheres vítimas de violência. Além disso, são desenvolvidas ações voltadas para o empreendedorismo feminino. "Entre as ações em planejamento, estão a inauguração de mais quatro unidades da Casa da Mulher Brasileira, que oferece atendimento especializado, a intensificação de programas educacionais para conscientizar a sociedade sobre a violência de gênero e a importância da denúncia", informou a secretaria em nota.
À reportagem, a secretária da Mulher, Giselle Ferreira, destacou que a rede de apoio às mulheres no Distrito Federal conta com 24 iniciativas públicas, incluindo o Espaços Acolher, que desempenha um papel fundamental no enfrentamento à violência doméstica. Segundo ela, um projeto pioneiro na capital federal, chamada DF Aluguel Social para Mulheres Vítimas de Violência Doméstica — implementado em setembro — já beneficiou 72 mulheres, oferecendo um auxílio mensal de R$ 600.
"Nós trabalhamos de forma transversal, com apoio das demais secretarias e parceiros da sociedade civil para realizar campanhas, projetos e ações levando serviços e equipamentos mais próximos às mulheres. Duas grandes conquistas, como o auxílio aluguel e o suporte aos órfãos do feminicídio, mostram que, quando o Estado é acionado, ele se torna uma porta de saída da violência, e que a denúncia salva", ressaltou Giselle.
Violência
Casos de violência doméstica, muitas vezes, evoluem para tentativas de femininicídio e podem culminar na morte da mulher. Em 2023, a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF) registrou 40 tentativas de feminicídio, enquanto no ano passado, foram 82 casos. Os casos em que houve morte somaram 31 em 2023 e 23 em 2024.
Nesta semana, duas tentativas de feminicídio foram registradas no Distrito Federal. João Paulo de Oliveira Costa Pereira, 33 anos, acusado de esfaquear a ex-companheira, Karolyne dos Santos Silva, 29, e dopar com Rivotril os dois filhos, de 5 e 9 anos, na última segunda-feira, em Ceilândia, permanece preso. A vítima recebeu alta ontem. Ao deixar o hospital, enviou um vídeo ao Correio, em que disse: "Graças a Deus, eu e meus filhos estamos vivos."
No Gama, Geir Souza de Jesus esfaqueou a própria companheira no pescoço e fugiu em seguida. Até o fechamento desta edição, o homem encontrava-se foragido. A mulher permanece internada em um hospital do DF. A 14ª Delegacia de Polícia (Gama) investiga o caso.
Ao Correio, o secretário-executivo da SSP-DF, Alexandre Patury, destacou que "nenhum incêndio começa grande. Esta é uma máxima cabível à violência doméstica. Normalmente, os sinais de agressão são claros, mas costumam ter sua percepção atenuada pela visão retrógrada de que a mulher deve tolerar brutalidades do companheiro para preservar a família", afirmou.
Patury também mencionou o uso da tecnologia como aliada no enfrentamento à violência de gênero, citando programas, como o Viva-Flor (botão do pânico) e a Dispositivo Móvel de Pessoas Protegidas (DMPP), que têm mostrado resultados positivos. "Nenhuma mulher submetida a este tipo de medida protetiva foi lesionada até hoje. Mais de 2.500 pessoas já passaram pelos programas ao longo dos anos, considerando mulheres protegidas e agressores monitorados", ressaltou.
Por fim, o secretário destacou que, embora os números de feminicídios no Distrito Federal tenham diminuído em 2024, em comparação com o ano anterior, os dados da pasta indicam um aumento nas denúncias de violência doméstica entre janeiro e setembro.
"Não tolere o amigo covarde que agride mulheres. Não compactue com a violência de gênero. Não seja passivo. Não queremos que a população se coloque em perigo enfrentando o agressor. Não é isso. Herói, também, é aquele que liga 190 e salva uma vida", completou o secretário.
Número de processos
2024 - 27.603
2023 - 25.896
2022 - 22.030
2021 - 21.80
2020 - 20.130
Fonte: DataJud