Tecnologia

Uso de IAs por crianças e adolescentes deve ser moderado, alertam especialistas

Apesar dos benefícios, é preciso ponderação e senso crítico na utilização de inteligência artificial jovem, de acordo com especialistas. Entenda como pais e responsáveis devem agir

Novas gerações crescem com a inteligência artificial imersa em seus cotidianos -  (crédito: Caio Gomez)
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Novas gerações crescem com a inteligência artificial imersa em seus cotidianos - (crédito: Caio Gomez)

Presente no cotidiano de muitas famílias, a inteligência artificial (IA) chegou para ficar, automatizando tarefas diárias, estreitando a relação das novas gerações com os algoritmos e levantando debates sobre o uso consciente das tecnologias. Muitos, inclusive, já nasceram inseridos nesse universo, de forma que o contato com essas ferramentas torna-se praticamente intuitivo. Segundo especialistas ouvidos pelo Correio, ainda que essas novidades tragam benefícios, é preciso ponderação. 

A IA consiste, entre tantas outras definições, em sistemas computacionais com a capacidade de realizar atividades, até então, desempenhadas somente por humanos. Assistentes virtuais, reconhecimento facial em dispositivos pessoais, aplicativos que indicam rotas e casas inteligentes, com ferramentas que ligam luzes e aquecedores automaticamente, são alguns exemplos.

Pode ser aliada?

Quando bem utilizada, a inteligência artificial pode ser uma ferramenta valiosa. Além de agilizar tarefas do dia a dia, a tecnologia tem o potencial de otimizar recursos utilizados na educação. "A IA pode oferecer feedbacks imediatos a educadores, além de indicar conteúdos personalizados a estudantes que, por ventura, tenham dificuldade em alguma disciplina. Também é possível, por meio de plataformas interativas, tornar a experiência de ensino mais envolvente e eficiente", comenta a psicopedagoga Cristiane Souza. 

De acordo com Frank Ned Santa Cruz de Oliveira, mestre em gestão de risco e inteligência artificial e especialista em direito digital, outra possibilidade é unir o trabalho dos algoritmos com as habilidades humanas. "Pode-se, por exemplo, utilizar alguma ferramenta para analisar um texto, como os chatbots, que respondem a comandos e perguntas, e complementar o material com a própria percepção e visão de mundo", explica. Além disso, a tecnologia pode contribuir na condução e conclusão de pesquisas. 

Na formação profissional, a IA pode acelerar a aquisição de conhecimentos. O jovem Eduardo Almeida, 27, conta que usa o Google Gemini e Microsoft Copilot para lhe auxiliar nos estudos, tirando pequenas dúvidas, fazendo resumos e criando questões relacionadas aos conteúdos estudados. Questionado se consegue blindar-se de fatores, como desinformação e dependência tecnológica, ele diz ter cautela.

"Quando se trata de vídeos, áudios e fotos, creio que ainda consigo perceber o que é real ou não. Porém, no caso de informações sobre campos que tenho pouca familiaridade, procuro buscar várias fontes para confirmar a veracidade dos fatos. Também recorro a ferramentas das redes sociais que checam se certas notícias são verdadeiras ou falsas. Em relação à privacidade e segurança, procuro não colocar meus dados em sites estranhos, manter perfis fechados em redes e fazer compras on-line com cartão virtual", explica. 

 28/01/2025 - CB - Volta às aulas / uso de tecnologias em sala de aula. Colégio Marista (602 Norte).
A Lei nº 15.100/2025, que proíbe o uso de celulares em sala de aula, foi sancionada pelo presidente Lula (foto: Fotos: Pedro Santana / CB)

No caso da IA generativa, que cria conteúdos novos, como imagens, textos, música, vídeos e áudio, é possível beneficiar usuários em relação à compreensão de conteúdos e termos técnicos, auxiliar na revisão de literatura específica em determinados temas e possibilitar explorar e correlacionar uma extensa base de dados.

"No entanto, é imprescindível a verificação das informações geradas. Não pode haver, simplesmente, a pedagogia da rendição automática do sujeito ao que é gerado pela IA. Por exemplo, se o estudante tem dificuldades na escrita, a IA que gera conteúdos, tipo o ChatGPT ou Deep Seek, não pode ser o caminho para encurtar os aprendizados necessários na produção textual.", pondera Carlos Lopes, professor e pesquisador da UnB, que ministra a disciplina Inteligência Artificial na Educação: Aplicações e Análise Crítica.

O pesquisador Carlos Lopes alerta que a IA generativa, pela base de dados que possui, pode reproduzir preconceitos e expressões já ultrapassadas, podendo ser utilizada pelos usuários sem que haja consciência de sua superação. "Por exemplo, a expressão 'pessoas com necessidades especiais' foi superada por 'pessoas com deficiência'. No entanto, uma pessoa sem esse conhecimento prévio pode reproduzir a expressão dominante a partir de uma base de dados da IA", argumenta. 

"A IA deve ter um desenho universal inclusivo, não invisibilizando ou excluindo as pessoas nem reproduzindo estereótipos ou termos capacitistas. A IA na escola não deve ser concebida como algo neutro. Do Estado, exige-se presença regulatória, inclusive, em conexão com a IA no âmbito escolar, por aspectos que se conectam à segurança e privacidade dos nossos dados", complementa.

 28/01/2025 - CB - Volta às aulas / uso de tecnologias em sala de aula. Colégio Marista (602 Norte).
Valdívia não restringe o uso, mas equilibra o acesso das filhas, Helena e Sofia, com outras atividades (foto: Pedro Santana / CB)

Impacto nas redes

Nas redes sociais, engana-se quem pensa que determinados conteúdos são recomendados por acaso. Os algoritmos — conjuntos finitos de instruções — são responsáveis por avaliar o comportamento dos usuários. Fato é que "as tecnologias, quando incorporadas na vida das pessoas, mudam os padrões de comportamentos", conforme defende Sérgio Eduardo Silva de Oliveira, professor do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (UnB).

A exposição frequente a mídias digitais, acompanhada de estímulos rápidos e mudanças constantes, impacta a capacidade das crianças manterem a atenção em tarefas mais lentas e profundas. Aquelas que crescem em ambientes tecnológicos podem desenvolver a habilidade de realizar multitarefas, porém, à custa da profundidade na compreensão. É o que avalia Cristiane Souza, psicopedagoga e doutora em ciências da educação. 

"Com a disponibilidade de informação na ponta dos dedos, as crianças podem confiar menos na memorização e mais na capacidade de encontrar informações quando necessário. Além disso, o uso excessivo de dispositivos pode reduzir interações sociais face a face, afetando o desenvolvimento de habilidades sociais e empatia. Quando não há supervisão parental, também corre-se o risco da exposição a conteúdos inadequados", enumera.

Segundo Cristiane, as recomendações variam, mas especialistas sugerem que a exposição a telas seja limitada nos primeiros anos de vida. "A American Academy of Pediatrics recomenda evitar telas para crianças menores de 18 meses, exceto para videochamadas. Para crianças de 2 a 5 anos, recomenda-se limitar a 1 hora de uso de qualidade. A partir dos 6 anos, é importante estabelecer limites consistentes", adverte. Para o professor da UnB Sérgio Eduardo Silva de Oliveira, entre 5 e 17 anos, o ideal é não ter mais de duas horas por dia de uso sedentário recreacional de tela.

A arquiteta e urbanista Ivana Almeida, 49 anos, controla o uso das telas por parte da filha, Hana, 10, que não possui celular. "Às vezes, o tablet é usado para atividades pedagógicas e, eventualmente, liberamos para momentos de entretenimento, como jogos, para que ela não fique tão por fora dos assuntos dos colegas. Queremos inserir a tecnologia em sua vida, mas sem 'perder a mão'", diz a mãe. Hana não vê problemas na restrição. "Desde que meus colegas não me 'troquem' pelos celulares, está tudo bem", garante.  

 28/01/2025 - CB - Volta às aulas / uso de tecnologias em sala de aula. Colégio Marista (602 Norte).
Ivana teme que o contato constante com tecnologias prejudique o desenvolvimento da filha Hana (foto: Pedro Santana / CB)

Já Valdívia Souza, 52, conta que nunca precisou fazer o controle de horas durante a utilização de dispositivos por parte das filhas Helena, 14, e Sofia, 19. "Elas mesmas se controlam, organizando o tempo para as tarefas e outras atividades do dia a dia", relata. A caçula, por exemplo, faz aulas de circo e consegue mediar o uso das telas e IAs. "Essas tecnologias não tomam conta do nosso tempo, então, não as vemos como algo ruim", diz.

Realidade editada

O psicólogo e professor Sérgio Eduardo Silva de Oliveira lembra que há uma forte relação entre o uso de mídias sociais e sentimentos ligados à comparação social e à imagem corporal, principalmente em adolescentes e jovens. "Estudos mostram que a quantidade de horas gastas no Instagram está inversamente relacionada com a sensação de bem-estar psicológico", ressalta.

"Influenciadores digitais se dedicam a criar conteúdos alegres, bonitos, cômicos, requintados e de sucesso nas redes. Quem consome isso, tende a comparar suas vidas com aquelas mostradas no Instagram, nem sempre verdadeiras, visto que são conteúdos muito bem pensados, editados e selecionados. Assim, a comparação aos corpos perfeitos, aos padrões de beleza e ao sucesso podem acarretar uma maior percepção de insatisfação com a própria vida", detalha Sérgio.

O que esperar do futuro?

Estamos diante de uma inteligência que, pela primeira vez na história, tira posição de trabalho de pessoas qualificadas. Não há muito o que ser feito nesse sentido. Quanto mais aprimoradas as IAs se tornam, mais espaço de trabalho de pessoas qualificadas elas tiram. Via prompt (texto ou símbolo que indica que um sistema está pronto para receber uma entrada ou uma instrução), é possível gerar inúmeras opções de logomarcas, por exemplo. No passado, seriam contratados designers gráficos. Lembro que tecnologia não pede licença, tecnologia se impõe.

Desde 2023, o Ministério da Educação (MEC) instituiu que todas as redes de ensino da Educação Básica tenham seus currículos adaptados com habilidades relacionadas à computação, inserindo disciplinas como mundo digital e pensamento lógico e computacional. O objetivo é preparar a sociedade do amanhã, incentivando-a a utilizar essas ferramentas de forma crítica.

Estamos em um estágio no qual os usuários entregam aos algoritmos pensamentos básicos, como "como sair de casa e ir até o shopping tal?". A pessoa sabe o caminho, mas quando ela coloca isso em uma ferramenta de IA, deixa de exercitar o próprio pensamento. Essas pequenas e micro atividades, de forma conjugada, são responsáveis por construir o raciocínio humano.

É preciso conscientização sobre os limites de uso, visto que, inevitavelmente, os algoritmos se aproximarão, cada vez mais, de uma cognição semelhante à humana, com capacidade de engenhosidade e de resolver múltiplos problemas. Precisamos refletir sobre o que chamamos de pós-humanidade e do que estamos deixando a cargo das IAs. 

Frank Ned Santa Cruz de Oliveira é professor do Departamento de Ciência da Computação (CIC), da UnB, especialista em direito digital, mestre em gestão de risco e inteligência artificial e doutorando em filosofia da mente

 

Responsabilidades dos pais

  • Estabelecer limites de tempo, definindo horários específicos para o uso de
    dispositivos;
  • Escolher conteúdos apropriados, utilizando ferramentas de controle parental e avaliando aplicativos e jogos antes de permitir que sejam usados;
  • Promover a comunicação, conversando abertamente com as crianças sobre o que
    elas estão acessando online;
  • Ser um exemplo, mostrando bons hábitos de uso da tecnologia;
  • Criar um ambiente de aprendizado, incentivando o uso da tecnologia como
    ferramenta de aprendizado, com pesquisas, vídeos educativos e jogos que
    estimulem o raciocínio lógico e a criatividade;
  • Educar sobre segurança nas redes, ensinando sobre a importância de não compartilhar informações pessoais e reconhecer comportamentos inadequados;
  • Realizar atividades em família sem o envolvimento de telas, como jogos de tabuleiro, esportes e passeios.

Fonte: Cristiane Souza, psicopedagoga 

Letícia Mouhamad
postado em 16/02/2025 06:00 / atualizado em 17/02/2025 09:15