A história de Lis e Mel

Siamesas: relembre a cirurgia e conheça o médico que liderou a equipe

A cirurgia rara para separar as gêmeas siamesas Lis e Mel, ocorrida no DF em 2019, marcou especialistas do mundo inteiro. Cinco anos depois do procedimento, o Correio volta a conversar com Benício Oton de Lima, neurocirurgião responsável pelo feito

Há cinco anos, o Distrito Federal foi marcado pelo primeiro procedimento de separação de gêmeos siameses na capital. A cirurgia de Lis e Mel, à época com apenas 10 meses, uniu mais de 50 profissionais em um único objetivo — salvar duas vidas. O Correio acompanha a trajetória das crianças desde o início e, nesta reportagem, entrevista uma das mentes brilhantes à frente de todo o procedimento. A cirurgia de separação das gêmeas é um marco multifacetado, que abarca as histórias de muitos profissionais da medicina. O procedimento deixou um rastro de orgulho e respeito na carreira do neurocirurgião Benício Oton de Lima, 73 anos.

Com uma agenda cheia, o médico abriu uma exceção e falou com a reportagem por telefone. Do outro lado da linha, a voz firme e pausada contou que acompanha Lis e Mel desde que elas tinham apenas 10 semanas de gestação.

kleber sales - gemeas2012

Na entrevista, relembrou a mobilização generalizada, à época, para que a separação tivesse êxito. "É uma coisa muito rara, para se fazer uma vez na vida ou em algum lugar que atraia as pessoas para este fim", explicou, deixando transparecer, sem vaidade, o orgulho de fazer parte da história.  

As estatísticas comprovam a raridade do caso. A cada 3 milhões de nascimentos, ocorre um diagnóstico como o de Lis e Mel. E, segundo doutor Benício, dos que nascem assim, mais da metade morrem em pouco tempo ou apresentam quadro classificado como impossível de divisão. "Mas a tecnologia está se desenvolvendo e possibilitando mais e mais procedimentos de separação", afirmou.  

O diagnóstico das meninas foi realizado no Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib), em 3 de janeiro de 2018, quando a equipe acionou o neurocirurgião. "Desde lá, acompanhei todas as ecografias da mãe, Camila Neves, o parto, a cirurgia e assim faço até hoje", contou.

As meninas chegaram ao Hospital da Criança de Brasília José Alencar (HCB) em 17 de agosto de 2018, com 2 meses de vida, para começar o atendimento multidisciplinar, envolvendo neurocirurgiões, anestesiologistas, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, psicólogos e nutricionistas. Desde então, a cirurgia passou a ser planejada, com muitas reuniões e ensaios — de posicionamento, manobras, separação das mesas cirúrgicas.

Minervino Júnior/CB - Lis e Mel com os pais Camilla e Rodrigo: celebração em família

O médico relembrou que, em 2019, o Hospital da Criança estava abrindo o centro cirúrgico e a operação das gêmeas foi uma das primeiras. Executar um procedimento como aquele requer tempo e demanda uma organização complexa. Então, ele foi atrás de profissionais para formar uma equipe.

"Trabalhamos no ambiente do SUS (Sistema Único de Saúde). Não teria pagamento. E em todo lugar que fui, só recebi 'sim' como resposta. Todo mundo, a sociedade inteira, tudo o que pedi me davam. Empresas forneceram materiais e equipamentos que não tínhamos. O Hospital da Criança todo mobilizado. Foi realmente uma união de esforços", relatou.

A cirurgia para separar os crânios de Lis e Mel aconteceu num sábado, 27 de abril de 2019. Começou às 6h30 e terminou às 2h30 da madrugada do domingo, totalizando 20 horas de procedimento. Para o processo, foram chamadas à ação equipes de apoio, como manutenção, engenharia clínica, laboratório, agência transfusional, hotelaria, farmácia, nutrição e limpeza.

Humberto Souza/ Divulgação/Hospital da Criança - Foram 20 horas de cirurgia para separar Lis e Mel e envolveu o trabalho de dezenas de especialistas

A equipe do HCB adotou insumos médicos e uniformes de cores diferentes para identificar as pacientes. Em referência à flor-de-lis, o rosa marcava todos os itens associados a Lis. O amarelo, por semelhança sonora com o nome Mel, identificava os materiais e profissionais relacionados à segunda gêmea. 

A cirurgia foi coordenada pelo neurocirurgião Benício; por Luciano Alves Fares (anestesiologista do HCB), Ricardo de Lauro (cirurgião plástico da Unidade de Queimados do Hospital Regional da Asa Norte — Hran); e por Carlos Eduardo da Silva (da enfermagem do HCB). Os três médicos responsáveis pelas áreas principais do procedimento — neurocirurgia, cirurgia plástica e anestesia — têm formação pela Universidade de Brasília (UnB). Os especialistas James Goodrich, referência mundial em gêmeos siameses; o cirurgião plástico Oren Tepper, a anestesiologista Carlene Broderick e as enfermeiras Kamilah Dowling e Elyse Uppal, também participaram da operação.

Um procedimento complexo, de alto risco e muito desgastante para os profissionais envolvidos. Mesmo assim, o clima era leve.  "Durou (a cirurgia) o dia inteiro. E todo mundo trabalhando contente. Foi uma junção de muita colaboração e, por isso, deu tão certo", relembrou Benício.  

Passados cinco anos da cirurgia que mobilizou médicos das redes pública, privada e até do exterior, a sensação que move o doutor Benício é o de dever cumprido e de gratidão por todos que uniram-se a ele na crença de que seriam capazes de salvar as duas meninas. Perguntado sobre qual é o sentimento quando fica frente a frente com elas, ele resume: "É muito recompensador testemunhar a felicidade da família. E as meninas, então, nem se fala".

Acompanhamento 

Hoje, os pais das gêmeas, Camilla e Rodrigo Neves, 30 e 35 anos, respectivamente, não sabem o que é silêncio absoluto há muitos anos — e agradecem a Deus por isso, afinal, o barulho e a bagunça constantes são um lembrete diário da saúde forte de Lis e Mel. 

E é correndo que elas passam a maior parte do dia, além de um cuidado com impactos na cabeça, que ainda está com a parte óssea se fortalecendo, praticamente não tem limitações. O acompanhamento médico atual é feito periodicamente com o neurocirurgião e uma dermatologista, que avalia a evolução da pele da cabeça e do rosto das meninas. Elas fazem alguns outros rastreamentos com endocrinologistas e gastropediatras, mas não são atendimentos relacionados à cirurgia. 

Recentemente as irmãs também passaram a ser atendidas por uma psicóloga. Quando tinham cerca de 3 anos, elas surpreenderam os pais ao falar na escola como tinham nascido. "A professora contou que elas uniram as testinhas e mostraram que tinham nascido 'assim, grudadinhas', mostrávamos fotos delas, mas não sabia que elas já tinham essa noção", lembrou Camilla. 

Milagre

Este ano, como estão mais velhas e passaram a ter novos questionamentos, os pais decidiram detalhar o processo, e frisaram o quanto o nascimento delas foi um milagre, depois que as duas sofreram bullying no colégio. Vaidosa, em um dia de aula em que o tema era diferenças das pessoas, Lis voltou para casa triste. Uma coleguinha a chamou de careca, por causa da cicatriz da cirurgia, onde não nasce cabelo. "Para deixar ela se sentindo menos diferente, fui mostrar que a irmã tinha e explicar que era por causa da cirurgia delas. A Mel, que é um pouco mais reservada, colocou a mão na cabeça, falou 'não' e saiu chorando", disse a mãe. 

Camilla explicou que, neste momento, não pensa em submetê-las a implantes, afinal, a pele está crescendo e mudando e, em breve, elas poderiam ter que repetir o procedimento. Quando chegarem à adolescência, elas poderão fazer não só os implantes, mas também outras intervenções que desejem no que diz respeito à pele afetada pela separação. Para ela, o importante é que as meninas continuem sendo felizes e entendam como o nascimento e a vida delas é especial.

As gêmeas continuam a ser acompanhadas pelo doutor Benício, uma vez a cada 12 meses. Este ano, elas passaram por uma avaliação neuropsicológica e o resultado revelou que todas as funções cerebrais estão preservadas e que estão desenvolvendo-se dentro do esperado para a idade.

 

Mais Lidas