O "silêncio mortal" que dominou dois momentos extremamente marcantes nas vidas de Camilla Vieira Neves e Rodrigo Martins Aragão, 30 e 35 anos, respectivamente, é coisa do passado e está bem longe da atual realidade da família. Todos os momentos recentes de suas vidas são marcados por conversas animadas entre as duas filhas, muitas brincadeiras e gargalhadas contagiantes. Mesmo enquanto os pais relaxam, é possível ouvir o som das meninas ao fundo da casa, seja brincando ou conversando.
As duas garotinhas com sorrisos encantadores, vestidas com blusas e saias iguais, e tiaras combinando, mal conseguem ficar paradas enquanto os pais recebem a reportagem do Correio, em sua casa, em Ceilândia Sul. A mãe garante que a energia das duas não tem fim, "são ligadas no 220W 24 horas por dia (risos)" e que essa empolgação faz parte da rotina da família.
Lis e Mel Vieira Aragão, 6 anos, são as famosas gêmeas siamesas que nasceram unidas pela cabeça no Distrito Federal, em 2018, e foram separadas em uma delicada e longa cirurgia no ano seguinte. A operação, comandada pelo neurocirurgião Benício Oton de Lima, no Hospital da Criança de Brasília, teve repercussão internacional. E, para contar sobre a vida da família quase seis anos depois que tudo começou, vamos voltar um pouco no tempo e lembrar a história que o Correio acompanha desde o início.
O primeiro baque
O primeiro "silêncio mortal" vivido pelo casal foi quando eles descobriram que o primeiro bebê seriam na verdade dois. Apesar de sonhar com a maternidade, Camilla, com 23 anos, na época, imaginava o cenário mais tradicional: iria se formar na faculdade, conseguir um bom emprego, casar e só depois engravidar.
Mas a vida tem dessas coisas e, mesmo admitindo que não foi "sem querer", aconteceu por um descuido do casal, Camilla conta que a gravidez não foi planejada e que os dois ficaram surpresos, apesar de felizes, com o resultado positivo no teste de farmácia.
Camilla e Rodrigo estavam juntos há quatro anos e assim que ela percebeu o atraso em sua menstruação, veio a negação. "Fiquei esperando, achando que ia descer e não queria fazer o teste. Eu só tinha 23 anos e estava cursando a faculdade!", conta, hoje rindo da situação.
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Num domingo, ela se rendeu e fez um teste de farmácia, que deu positivo. No dia seguinte, um exame de sangue confirmou a gravidez e, enquanto Camilla repetia, para si mesma, "meu Deus, eu só tenho 23 anos", a avó materna celebrava o primeiro neto.
Camilla garante que só pode ter sido Deus que a levou a fazer logo o teste. "Na quarta-feira eu tive um sangramento e se já não soubesse da gravidez, ia achar que estava menstruando e perderia minhas filhas". O sangramento era um descolamento de placenta, que se não tivesse descoberto rapidamente, teria resultado em um aborto espontâneo da gestação que tinha cinco semanas.
Chegando ao Hospital Regional da Asa Norte (Hran), Camilla recebeu o diagnóstico e foi orientada a manter repouso e tomar uma medicação, mas a unidade não tinha nenhum aparelho de ultrassom disponível no momento para confirmar e avaliar a extensão do caso.
Uma amiga que trabalhava em um hospital particular conseguiu um encaixe e Camilla correu para ver o bebê por meio do ultrassom e ter a certeza de que tudo ficaria bem. Chegando lá, sozinha na sala de exame, ela foi orientada pelo médico a ficar em repouso para manter a gravidez. Naquele momento descobriu que teria não apenas um, mas dois bebês.
"Saí de lá sem saber como contar para o Rodrigo, fomos andando para o estacionamento e depois de explicar sobre o descolamento, o repouso e dizer que tudo ficaria bem, eu disse: 'Mas tem mais uma coisa'. Ele parou, me olhou e eu o informei que eram gêmeos. Ficamos em outro "silêncio mortal" e fomos para casa desnorteados", lembrou.
Depois do choque inicial e de ficarem sem saber o que dizer para o outro, a empolgação começou a tomar conta da nova família e, assim que chegaram em casa, ligaram para as futuras vovós, que também não se contiveram de tanta empolgação.
Mais um susto
Em função do descolamento de placenta, Camilla precisava fazer um acompanhamento médico de 15 em 15 dias. No primeiro retorno, nada mudou, a médica orientou continuar os mesmos cuidados e pediu que ela voltasse na próxima quinzena.
Nessa consulta, quando estava com 10 semanas de gestação, tudo mudou. A médica que fazia o exame estava estranhamente quieta. Camilla e Rodrigo começaram a ficar inseguros, perguntando se tudo estava bem. Antes de responder, a médica pediu que a técnica de ultrassom chamasse uma colega, o que assustou ainda mais os pais de primeira viagem.
"Foi a mesma médica que nos atendeu na consulta anterior. Ela disse que tinha notado algo no exame anterior, mas não tinha certeza do que viu e quis ouvir outra especialista (sobre o diagnóstico). A gente escutando isso, sem saber do que elas estavam falando", disse Camilla.
Em seguida, ela olhou para o casal e perguntou se eles sabiam o que eram siameses. Naquele momento, Camilla não conseguiu ouvir mais nada do que era dito, e Rodrigo ficou sem chão, enquanto as médicas explicavam que os bebês eram unidos pela cabeça.
Os dois foram orientados a procurar um atendimento especializado e saíram do hospital calados. "Não conseguíamos nem falar um com o outro, saímos da consulta em silêncio mortal, chegamos em casa no mesmo silêncio e ali eu chorei e liguei para minha mãe e minha tia", lembrou Camilla.
A tia, enfermeira, logo conseguiu um encaminhamento para que Camilla fosse atendida pela equipe de medicina fetal do Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib). Nas primeiras consultas, Camilla e Rodrigo foram bombardeados com informações e inúmeras possibilidades. E uma resposta mais definitiva só seria possível após avaliação de um neurocirurgião, sobre a viabilidade de uma possível separação e daria ao casal uma noção da qualidade de vida que as duas crianças poderiam ter depois do nascimento.
Nesse momento de incerteza, Camilla foi informada que, a depender do diagnóstico, ela poderia fazer um aborto legal. Católica, começou a se questionar, mas tinha, como prioridade absoluta, o bem-estar das filhas e o desejo de não as ver sofrendo. "Elas eram frontais (unidas pela testa), então eu pensava muito em que vida elas teriam. Foi um processo doloroso e só encontrei minhas respostas depois da conversa com o padre que me viu crescer", recordou.
Sem julgamentos e sem repetir para ela todo o aspecto dogmático da questão, o religioso a acolheu e questionou se ela daria conta do peso que seria encerrar a gestação e que, talvez, essa vivência fosse uma das formas de Deus permitir que ela sentisse o que era ser mãe. "A partir daí eu só chorava, mas depois desse encontro com Deus, eu senti uma paz que não sei explicar. E todo o processo ficou mais tranquilo, aconteça o que acontecer".
Em seguida, eles conheceram uma figura que se tornaria um anjo e um amigo para a vida toda: o neurocirurgião pediatra Benício Oton de Lima, referência na área e quem bancou a decisão de operar Lis e Mel. Na época, o médico participava de uma comissão que avaliava crianças que nasciam sem cérebro e foi chamado para analisar o caso das gêmeas craniópagas, ou seja, unidas pela cabeça, e indicar ou não um aborto terapêutico (em casos de estupro, morte iminente da mãe ou anencefalia). A resposta dada após consulta e exame mudou para sempre as vidas de Camilla, Rodrigo, Lis e Mel: "Tem cérebro, nasce e eu separo", concluiu, Camila estava na décima semana de gestação.
Unidas pelo coração
Depois da cirurgia de separação, feita quando as meninas tinham 11 meses de idade, em abril de 2019, o primeiro sentimento percebido nas pequenas foi a saudade recíproca. Lis reagiu a estímulos dois dias depois do procedimento, Mel demorou sete dias e, enquanto se recuperava, foi acometida por uma febre de 40º que não tinha explicação médica. "Estavam há uns 15 dias sem se ver e um dos médicos disse que era saudade da irmã. Elas estavam isoladas para evitar contaminação cruzada, mas o médico disse que era hora de juntar as duas. Mel melhorou do dia para a noite", lembrou Camilla, emocionada.
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As irmãs se olharam, se tocaram e, apesar de passarem por uma estenoante cirurgia de separação física, nunca mais largaram uma da outra. Camilla conta que em uma das únicas vezes que as duas resolveram fazer programações diferentes, aos 6 anos, uma não parava de falar da outra.
Como acontece com muitos irmãos gêmeos, uma delas é mais dominante, papel vivido por Mel. Em um dia deste ano, Lis queria ir para uma festa de aniversário e Mel queria ficar em casa, por não querer se separar da irmã, a primeira desistiu de passear. "Eu não deixei. Falei assim: 'Lis, você quer, então você vai'. Não queria que ela desistisse só por causa da irmã, e a Mel não foi. Passou um tempo, ela, que estava em casa comigo, ficou pedindo para ligar para a irmã Lis para saber se estava tudo bem", disse Camilla, rindo.
Lis também não parou de pensar em sua gêmea. Durante a festa inteira saiu recolhendo brindes, desenhos e doces para levar para Mel. Depois disso, raramente as duas fazem alguma programação uma sem a outra.
Este ano, a família se mudou para uma nova casa e as duas escolheram continuar no mesmo quarto. Elas dormem juntas em uma cama de casal, que também foi escolhida levando em consideração a preferência delas e, muitas vezes no meio da noite, quando os pais vão conferir se estão bem, as encontram dormindo abraçadas.
Na escola
Este foi o primeiro ano em que elas ficaram em turmas separadas na escola. "Foi uma observação nossa e do colégio, avaliando o que era melhor para elas. A Lis era um pouco mais dependente e as duas precisavam desse processo (de distanciamento). Lis chorou muito no começo, mas agora elas estão adaptadas", contou a mãe.
Além das aulas, as irmãs começaram a fazer ginástica, um dos poucos esportes que elas podem praticar. Camilla conversou com o sempre presente doutor Benício Oton, que liberou a dança. Lis e Mel não podem fazer nenhum esporte de impacto ou que ofereça riscos de batidas na cabeça. Os ossos do crânio ainda não estão 100% fortalecidos e é como se as irmãs tivessem uma grande moleira.
O futuro
No bate-papo com Camilla e a reportagem foi cheio de risadas, brincadeiras e muita emoção. Rodrigo não é fã de entrevistas e deixa a tarefa para a mulher, enquanto fica com as filhas. Ao ser indagada se pretendem ter mais filhos, Camilla ri e respira fundo antes de responder. Embora diga que não existem planos para um novo bebê tão cedo, a possibilidade não está descartada. "Eu tenho vontade de viver a experiência de ter só um bebê, aquela coisa de poder dar toda a atenção. Mas aí tem o medo de virem gêmeos de novo e de voltar para a rotina de nenéns, logo agora que elas estão tão independentes".
Ela e Rodrigo, que comemoram mais de uma década juntos, passaram por um breve período de separação logo depois da cirurgia de Lis e Mel, mas pouco tempo depois resolveram dar uma nova chance para o casamento, que segue firme e forte. Na hora de tirar as fotos, as irmãs correm para chamar o pai. "Eu falei que dessa vez pelo menos nas fotos ele ia sair!", brincou Camilla.
Fãs do filme da Disney, Descendentes, cheio de músicas e números de dança e firmes nas aulas de ginástica, um futuro artístico parece combinar bem com as gêmeas, que também adoram brincar de boneca. "Mel, qual é o nome daquele filme que a gente assiste todos os dias?", pergunta Lis enquanto as duas mostram as várias Barbies, que vão desde a romântica Rapunzel até as radicais Monsters High.
Mel, que também não tem certeza do nome do filme, pergunta para a mãe e sai correndo para dar um superabraço no fotógrafo do Correio enquanto nos despedimos: "Tchau, bonitão", completou, arrancando risadas de todos.
Memória
A condição
As gêmeas nasceram com uma condição conhecida no meio médico como craniopagia, ou seja, elas eram unidas pela cabeça. Histórias assim são raras, acontecem uma vez a cada 2,5 milhões de nascimentos. No caso das duas brasilienses, elas estavam unidas pelas testas.
Causa
A gemelaridade imperfeita, como é tecnicamente conhecido o caso de gêmeos siameses, acontece uma vez em cada 100 mil nascimentos. É causada por um erro na divisão celular após o 12º dia da concepção em embriões de gêmeos de um único óvulo e um espermatozoide.
O nascimento
As meninas nasceram no Hospital Materno-Infantil em junho de 2018. Como o pré-natal já indicava que elas eram siamesas, toda uma equipe de profissionais, de diferentes áreas, foi mobilizada para realizar o parto, que foi uma cesariana. Pelo menos 12 médicos acompanharam o caso desde a gestação.
Diagnóstico
Após o nascimento, confirmou-se que as irmãs estavam ligadas pela testa e dividiam pele, parte do crânio e meninge, um conjunto de membranas que reveste o cérebro. O fato de as crianças não dividirem nenhum órgão vital foi uma ótima notícia, pois esse fato diminuía consideravelmente o risco de uma delas morrer durante o procedimento de separação ou mesmo de ficar com sequelas graves após a cirurgia.
Preparação
Toda a preparação incluiu reuniões, análise de exames, estudo de outros casos e até a construção de um molde tridimensional da cabeça das crianças.
Espera
O principal obstáculo à cirurgia era esperar que as crianças estivessem fortes o suficiente para passar pelo procedimento cirúrgico. Assim, elas foram acompanhadas durante os primeiros meses de vida para que ganhassem peso e ficassem prontas.
A operação
Finalmente, no sábado, 27 de abril, pouco antes de as meninas completarem 11 meses, a cirurgia foi realizada com sucesso no Hospital da Criança de Brasília, por uma equipe de profissionais da cidade.
Eu, repórter
Resiliência esensibilidade
Por Ailim Cabral
Como acontece desde que nasceram e se tornaram mundialmente conhecidas, Lis e Mel derretem os corações de todos que têm a sorte de encontrá-las. Aqui, peço licença aos leitores (e aos meus editores), para abusar da primeira pessoa e fazer uma confissão. Como mãe de primeira viagem —de gêmeos, dois guris de um ano e três meses — me aprofundar e escrever histórias de crianças e famílias que passaram por tantos desafios é um pouco assustador, sou uma pessoa sensível por natureza e fiquei em dúvida se daria conta sem acabar chorando em momentos inadequados.
Mas ao colocar os olhos em Lis e Mel, ver as irmãs com 6 anos, brincando e sendo imensamente felizes como se o mundo nunca as tivesse desafiado com a própria vida, é impossível parar de sorrir, e a bem da verdade, apareceram aqui e ali aquelas lágrimas de emoção, que acredito ter disfarçado com sucesso, no papo alto astral com Camilla, que me surpreendeu imensamente com sua força e a alegria de viver que nunca foi abalada.
Em muitos momentos, me vi em Camilla e, mesmo tendo compartilhado de alguns dos sentimentos dela na minha própria gestação, é impossível imaginar a avalanche que tomou conta daquela nova mãe ao descobrir a condição rara e que colocava a vida das filhas em risco. E isso só aumenta a admiração pela força que ela teve e tem para garantir que Lis e Mel recebam os melhores cuidados possíveis, além de todo o amor.
E sem querer roubar mais espaço dessa história linda sobre uma família forte, cheia de fé e feliz, agradeço a Camilla e ao Rodrigo por terem colocadoduas crianças tão amorosas e cheias deluz no mundo, e por nos permitir fazerparte dessa trajetória desde o início. Afamília é um exemplo de resiliência e é gratificante poder observar de pertoa vida seguindo seu curso e Lis e Mel experimentando o privilégio de serem crianças.