Sonhar é transcender à realidade. Uma oportunidade para entrar em contato com desejos mais profundos, individuais ou coletivos. Alguns deles, acessados somente durante o sono, quando o estado de vigília dá uma trégua à realidade, às vezes dura do dia a dia.
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Refletindo sobre a potência do sonhar, o Correio teve o privilégio de entrevistar brasilienses movidos por esse conjunto de imagens e pensamentos que os movem diariamente. E assim conheceu Márcia, Marilúcia e Adriana, três mulheres potentes e batalhadoras, e as abordou com a seguinte pergunta: se pudesse pedir qualquer coisa, qual sonho seu pediria para o Papai Noel realizar? As respostas você acompanha agora.
A cura para o câncer
Os sonhos movem a vida de Márcia Renata Mortari desde muito cedo. Em um Natal, por volta dos 12 anos, ganhou um kit alquimia daqueles que você mistura os líquidos e eles mudam de cor. Ali, se imaginou uma grande cientista, vestida de jaleco branco agitando componentes e fazendo descobertas.
Hoje, aos 47 anos, a mineira de Itabirito é exatamente a cientista que sonhou, com jaleco branco e tudo o que tem direito. Márcia formou-se em biologia, é doutora em neurociências, professora da Universidade de Brasília (UnB) e uma pesquisadora respeitada. É casada com Maurício e juntos eles cuidam dos quatro filhos: Gustavo, 23, Júlia, 17, Gabriel, 16, e Laura, 9.
Há pelo menos três décadas ela se dedica a descobrir como transformar o veneno do marimbondo em medicamentos para doenças degenerativas como Alzheimer, Parkinson e Epilepsia. "Conseguimos um composto capaz de reduzir e até abolir epilepsia em cães. Ele tem um efeito neuroprotetor que deixa os animais mais dispostos para brincar. Agora estamos esperando aprovação para ser comercializado", conta.
Em relação às doenças de Alzheimer e Parkinson, a meta é conseguir produzir um spray nasal capaz de impedir a progressão da doença e trazer alívio aos pacientes. Os testes foram realizados em animais e estamos verificando a segurança do medicamento para futuros testes em humanos.
Há dois anos, a complexidade da vida impôs um novo sonho à Márcia a partir de um drama pessoal e familiar. Diagnosticada com câncer de mama, ela enfrentou os impactos emocionais e físicos do tratamento para combater o tumor. "Ali eu decidi: eu preciso fazer algo para a cura da doença e melhorar a eficácia do tratamento tornando-o menos nocivo para as mulheres. É minha vingança pessoal contra o câncer", conta.
E assim ela fez. Voltou ao laboratório, debruçou-se sobre o banco de dados construído ao longo de mais de 30 anos de pesquisa com o marimbondo e desenvolveu um medicamento inédito inspirado no veneno do inseto e, em parceria com um laboratório, fez testes no tumor subtipo responsivo e no triplo negativo com sucesso. "Ele seleciona as células tumorais das sadias matando as doentes. Isso reduz os efeitos adversos do tratamento", explica.
A primeira pessoa para quem Márcia contou a descoberta foi Maurício, o marido dela. "Liguei imediatamente para ele. Mandei o resultado para os meus médicos e saí correndo pelos corredores da universidade comemorando a descoberta", relembra.
E os sonhos de Márcia se renovam dia a dia. "Quero ver a cura para o câncer. No meu tratamento, eu e meu marido tínhamos uma frase: 'O amor não adoece'. Quero que a sociedade veja os cientistas como parte dela. Nós sofremos os mesmos desafios. Minha paixão é servir à sociedade e vencer tudo o que está posto à nossa frente".
Independência financeira
É diante de uma máquina de costura — que quebra um dia sim e o outro também — que a piauiense Marilucia Gomes de Sousa, 49 anos, vislumbra o futuro. Para quem passou dois anos de cama com depressão profunda, crises de ansiedade e descobriu uma fibromialgia ser capaz de sonhar com o amanhã é uma vitória.
Nascida em Buriti dos Lopes, uma cidade com 19,6 mil habitantes, Marilucia chegou ao Distrito Federal com 15 anos. Trabalhou como doméstica, em restaurantes, no comércio e de babá. Quando a pandemia chegou, em 2020, ela tinha uma loja na Feira dos Goianos. "Um dia passei com febre e muita dor. Chamaram um Uber e, quando cheguei em casa, não conseguia botar meus pés no chão. Meus filhos me carregaram para a cama e lá fiquei por dois anos. Meu cabelo caiu, eu não comia, não tomava banho, fiquei com 23kg tendo 1,65m. Em várias ocasiões, não havia um caroço de arroz para eu cozinhar", relembra.
Mesmo medicada, o estado de saúde de Marilucia preocupava toda a família. Nesse período, ela morava em Águas Lindas de Goiás e uma irmã decidiu trazê-la para o Setor O, em Ceilândia. Aluguel, medicamentos, comida, gás para tudo isso, ela dependia da solidariedade de conhecidos e desconhecidos. Se recusava a sair de casa. Não se olhava no espelho. Tinha vergonha da mulher franzina que se tornara.
Um dia, Marileide, irmã mais nova dela, a matriculou num curso de costura na Ascap, Ação Social Caminheiros de Antônio de Pádua, entidade sem fins lucrativos que atende a comunidade carente de Ceilândia. "Todos os dias, ela e meus filhos ficavam na esquina até eu chegar na Ascap. E morria de vergonha das pessoas me olharem. Eu não sabia enfiar uma agulha na máquina. E quando não conseguia, chorava", conta.
Marilúcia diz ter sido tão bem acolhida, que a partir da terceira semana, não queria mais sair da Ascap e pedir para ficar nos dois turnos. Ali, recebia amparo emocional, material e aprendia uma nova profissão. Pouco mais de um ano após ser atendida pela entidade, a agora costureira sabe ajustar roupas, fazer bainha e tapete. A máquina que trabalha, foi uma doação. A renda melhorou. O dinheiro obtido com a nova profissão, complementa o benefício do Bolsa Família no valor de R$600. O filho mais velho, Erick, 24 anos, já é casado e entrega para a mãe o tíquete alimentação que recebe da empresa. Luis Fellype, 21 anos, faz estágio em uma clínica médica. E Erika, de 18, terminou o ensino médio este ano e planeja fazer faculdade de administração ou psicologia.
Com os filhos se encaminhando na vida, Marilucia, que é mãe solo e passou quase três anos sem qualquer renda, se orgulha de conseguir fazer economia para realizar dois grandes sonhos. "Todo mês tiro R$ 10 das minhas costuras e coloco numa poupança para eu comprar uma máquina de costura nova. E, se Deus quiser, vou ganhar dinheiro suficiente para não precisar mais do Bolsa Família e, assim, abrir vaga para outra pessoa".
Emocionada, a costureira diz que se olha hoje no espelho e pensa: "Eu sou um milagre!". E parte desse milagre ela atribui à família, aos conhecidos e desconhecidos que a amparam e, em especial, a quatro profissionais da Ascap: Tia Rosane, Suzi, Catarina e Robervaldo, o anjo que a socorre toda vez que a máquina de costura pifa.
Moradia digna
Adriana Alves da Silva, 29 anos, não sonha apenas por si, mas por toda uma comunidade negligenciada pelas autoridades. Seu sonho é, na verdade, a garantia do direito fundamental à moradia digna, assegurado pelo artigo 6º da Constituição Federal. Moradora de Santa Luzia, uma ocupação localizada na Estrutural, Adriana diz que, se pudesse fazer um pedido ao bom velhinho, seria por melhorias para o local.
"O que falta aqui é estrutura. O calçamento é o principal problema. Vivemos em meio à lama, e minha mãe, que tem dificuldades de locomoção, muitas vezes não consegue nem ir ao médico porque não consegue andar nesse barro. O saneamento básico também é uma questão crítica. O esgoto atrai ratos, que invadem as casas, e, quando chove, tudo fica alagado, com a água chegando até a altura da perna. Já vi muitas pessoas adoecerem por causa da água contaminada", relata Adriana.
Ela veio do Nordeste com os pais, irmãos e sobrinhos há 18 anos. No início, a família morou de aluguel em diferentes locais na Estrutural até descobrir a ocupação de Santa Luzia, há dez anos, onde passaram a viver. "As pessoas precisam entender que quem sai do aluguel para morar aqui é porque não tem outra opção. Passamos muitos anos pagando aluguel — dinheiro que não volta —, até que decidimos construir uma casa de madeira aqui. Na comunidade as pessoas estão tentando sobreviver, o governo precisa nos enxergar", afirma com firmeza.
Segundo Adriana, a presença dos políticos na região se resume a interesses eleitoreiros. "Na época das eleições, eles aparecem em massa, fazem carreatas, prometem mudanças. Mas, no fim, as únicas melhorias que tivemos aqui foram feitas pelos próprios moradores, que construíram suas casas e algumas calçadas por conta própria", conclui.
Saiba Mais
FRASES
Quero ver a cura para o câncer. No meu tratamento, eu e meu marido tínhamos uma frase: ‘O amor não adoece'"
Márcia Renata Mortari, cientista
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Se Deus quiser, vou ganhar dinheiro suficiente para não precisar mais do Bolsa Família e, assim, abrir vaga para outra pessoa”
Marilucia Gomes de Sousa, costureira
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Decidimos construir uma casa de madeira aqui. Na comunidade as pessoas estão tentando sobreviver, o governo precisa nos enxergar"
Adriana Alves da Silva, moradora do santa Luzia