Lucius Pereira*, de 30 anos, mora na Estrutural e aposta pelo menos quatro vezes por semana. Ele gasta em média R$ 30 em cada jogada, na esperança de multiplicar o dinheiro. "Os anúncios da internet fazem o cara pirar em querer ganhar mais. Às vezes, você realmente dá sorte e recebe algum dinheiro", contou.
Ele disse que já teve lucro de R$ 417, usados para pagar contas de casa. "Dei sorte, mas sei que não posso contar com isso sempre", reconheceu. Apesar disso, ele ainda não vislumbra parar tão cedo com as apostas. "Pretendo largar, mas não agora. Querendo ou não, é um vício. Já apostei usando o cartão de crédito. Preciso 'dar uma aquietada'", confessou.
O morador da Estrutural é um exemplo de que, com a popularização das apostas esportivas on-line, o desejo de melhorar a situação financeira pode, rapidamente, se transformar em adrenalina e, em seguida, evoluir para um vício.
Segundo uma pesquisa nacional realizada pela Serasa, em parceria com o Instituto Opinion Box, 44% dos endividados que já apostaram relataram ter jogado justamente com o objetivo de quitar uma dívida. Além disso, destacam-se a tentativa de obter dinheiro rápido para pagar contas (29%) e a busca por uma renda extra (27%). Entre os apostadores, 52% relataram ter pedido mais dinheiro do que ganharam (confira outros dados no infográfico).
Especialista em educação financeira na Serasa, Thiago Ramos disse que esses são resultados que precisam ser vistos com muita atenção. "Apostas são um risco financeiro. Podem ser feitas como uma forma lazer, e não como uma possibilidade de fonte de renda extra", alertou.
Baseada nos números da pesquisa e no recente aumento da quantidade de casas de apostas, a Serasa criou um manual das bets para contribuir com a conscientização da população sobre o tema. "Nele, convidamos especialistas para dar dicas de como apostar de maneira consciente, sem comprometer as finanças do mês", explicou Ramos.
Transtorno
De acordo com Lucas Benevides, psiquiatra e professor de medicina do CEUB, esse vício é categorizado especificamente como um transtorno de jogo, reconhecido por organizações de saúde mental. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece o vício em jogo como uma doença (ludopatia), descrita no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5). "O transtorno é caracterizado por um padrão persistente e recorrente de comportamento de jogo que prejudica a vida pessoal, familiar ou vocacional do indivíduo", explicou.
Entre os comportamentos que podem indicar depedência em jogos de aposta, segundo Benevides, estão a necessidade de apostar quantidades crescentes de dinheiro para alcançar a excitação desejada; irritabilidade ou inquietação quando tenta reduzir ou parar de jogar; mentiras para ocultar o grau de envolvimento com o jogo; e perda de controle manifestada pela incapacidade de limitar o dinheiro ou tempo gasto em jogos. "A pessoa pode colocar em risco ou perder relacionamentos significativos, emprego, oportunidades educacionais e de carreira", comentou o professor do CEUB.
O especialista ressaltou que os jogos de aposta pela internet podem levar os indivíduos a problemas financeiros graves, fazendo com que enfrentem dívidas crescentes, utilização inadequada de economias, venda de bens pessoais e, até mesmo, empréstimos ou fraudes para financiar o vício. "Essa situação pode resultar em repercussões financeiras e legais, impactando significativamente a qualidade de vida do indivíduo e de sua família", argumentou o psiquiatra.
De acordo com Lucas Benevides, o tratamento para o vício em jogos de apostas pode incluir uma combinação de terapias psicológicas, suporte de grupos de ajuda e, em alguns casos, medicação. O profissional também indicou a terapia cognitivo-comportamental, comumente usada para ajudar o indivíduo a modificar pensamentos e comportamentos relacionados ao jogo, aprender a gerenciar impulsos, e lidar com problemas associados ao vício.
O psiquiatra ressaltou a importância de grupos de apoio, como os Jogadores Anônimos, que proporcionam um ambiente de suporte para indivíduos em busca de recuperação. "Em casos específicos, medicamentos podem ser prescritos para tratar problemas subjacentes que podem contribuir para o vício, como depressão ou transtornos do espectro bipolar. É fundamental procurar ajuda médica nesses casos", avaliou.
Roleta-russa
Beto Adictus*, 26, garante que conseguiu parar antes de fazer grandes dívidas. O morador de Samambaia começou a jogar por causa do gosto pelo futebol. A promessa de lucro ao acertar o resultado dos torneios logo o fez gastar mais do que podia. "No início, fazia apostas pequenas, de R$ 20 ou R$ 50, mas cheguei a colocar até R$ 300, em um único dia", recordou. Ele contou que o lucro ia para pagar despesas diárias e, em alguns casos, contas mais urgentes, como faturas de internet.
O jovem, no entanto, decidiu largar as apostas, após ver conhecidos entrarem em uma perigosa espiral de vício. "Tinha amigos meus pedindo empréstimos para agiotas e se afundando ainda mais, sendo ameaçados e, mesmo assim, não pararam. Continuaram jogando e usando o dinheiro para pagar os empréstimos. Achei que, no ritmo que estava, poderia ser eu um dia", ressaltou.
Crime
Delegado da 9ª DP (Lago Norte), Erick Sallum disse ao Correio que as as bets podem se enquadrar como um crime quando englobam contravenção de jogos de azar, lavagem de dinheiro, além dos influencers que fazem propaganda de sites ilegais, crime de propaganda enganosa. "Foi publicada a Lei 14.790/23 e hoje, no Brasil, essas bets foram legalizadas desde que obtenham prévia autorização da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda (SPA/MF) para explorar essa atividade", pontuou.
Segundo ele, durante algumas de suas investigações, presenciou muitos casos de pessoas que se tornaram dependentes. "Algumas delas pegaram empréstimos e comprometeram sua vida financeira, atrás da ilusão da riqueza rápida. Há notícias de pessoas que chegaram ao suicídio depois de perderem tudo que tinham", lamentou. "Acho uma atividade péssima, que traz questionáveis benefícios à economia real e gera consequências deletérias demais", avaliou Sallum.
O delegado deu algumas dicas para que as pessoas não caiam em golpes. "Tenha certeza de que a casa de apostas tem autorização de funcionamento. A lista de empresas autorizadas é pública e pode ser consultada no website da SPA/MF. Atualmente, são cerca de 100 empresas", comentou.
Copinha
Ontem, a Secretaria de Prêmios e Apostas divulgou uma nota técnica proibindo qualquer tipo de apostas na Copa São Paulo de Futebol Júnior de 2025. Está proibida ainda a publicidade das bets em uniformes das equipes, placas de publicidade e estádios. Além disso, emissoras e canais de internet que detêm o direito de transmissão não poderão citá-las nas programações.
*Nomes fictícios para preservar a identidade dos entrevistados.
Colaboraram Alessandro de Oliveira e Darcianne Diogo.
Saiba Mais
Como está a regulamentação?
A Lei nº 14.790/2023 estabeleceu diretrizes para um mercado seguro e transparente das bets, abordando o combate à lavagem de dinheiro e incentivando práticas de jogo responsável. Neste ano, o Ministério da Fazenda avançou com a Portaria SPA/MF nº 1.207, que exige comprovação de patrimônio e reservas financeiras das empresas, além de um sócio brasileiro com, no mínimo, 20% de participação. Outra medida relevante, a Portaria nº 1.330/2023 determinou limites de tempo e perdas, cadastro rigoroso de usuários e mecanismos de autoexclusão, buscando proteger a saúde financeira dos apostadores.
Para os próximos meses, o processo de licenciamento de empresas de apostas deve ser intensificado, com a análise de documentação e exigência de pagamento de outorga. Ao custo de R$ 30 milhões, por empresa, o licenciamento quer assegurar a conformidade com as exigências legais, além de regularizar o mercado. A regulamentação também deve obrigar as empresas a adotar diretrizes de jogo responsável, prevenindo danos financeiros às famílias. Além disso, requisitos de monitoramento e auditoria financeira buscam impedir o uso dessas plataformas para lavagem de dinheiro, protegendo a integridade financeira do país.
Cinco perguntas para
Por que algumas pessoas se viciam em jogos e outras não?
Isso acontece porque algumas pessoas têm predisposição genética que as torna mais vulneráveis a desenvolver vícios. Fatores como histórico familiar, traumas, estresse e a busca por prazer ou alívio emocional também podem influenciar.
Quando é que apostar por meio de bets vira um vício? Quando a pessoa deve pisar no freio?
Quando se torna um comportamento compulsivo e começa a interferir negativamente na vida da pessoa, como nas relações pessoais, no trabalho ou na saúde mental. Se a pessoa sente a necessidade de apostar cada vez mais para obter o mesmo nível de prazer ou começa a esconder suas atividades, é um sinal claro de alerta. Pisar no freio deve ser considerado quando as apostas não são mais uma forma de entretenimento, mas uma obrigação ou uma forma de fuga.
Como as pessoas próximas devem agir quando percebem que a pessoa está jogando além da conta?
É bom ter conversas abertas e sinceras, sempre evitando julgamentos e críticas e focando no apoio e na oferta de ajuda.
Nos consultórios já há muitos pacientes viciados em bets?
Sim, o número de pacientes tem aumentado, principalmente por causa da facilidade de fazer apostas on-line sem sair de casa. Esse acesso simples e a crescente aceitação das apostas em várias áreas têm levado mais pessoas a desenvolver esse problema.
Em termos de políticas públicas, o que pode ser feito?
Seria ideal ter mais políticas públicas voltadas para educação e prevenção, que forneçam informações sobre os riscos das apostas e apoio à saúde mental. Além disso, regulamentar a publicidade de apostas e facilitar o acesso a tratamentos adequados pode ajudar a diminuir os casos de vício.
Juliana Gebrim - psicóloga clínica e neuropsicóloga pelo Instituto de Psicologia Aplicada e Formação de Portugal (IPAF)