Em meio ao Setor de Embaixadas, na Asa Sul, uma vila com chão de terra e residências majoritariamente de madeirite destoa das construções locais. A Vila Cultural Cobra Coral, com início da ocupação datado da década de 1970, conta com cerca de 63 famílias e é palco de projetos culturais como a Casa da Árvore e Circo Inventado, além de ser espaço do Centro Tradicional de Invenção Cultural, casa do Seu Estrelo e Fuá do Terreiro, patrimônio cultural do DF. Parte das residências da Vila, no entanto, podem ser desocupadas no início de 2025.
A área, segundo o Instituto Brasília Ambiental (Ibram), faz parte do espaço previsto para construção do Parque Ecológico da Asa Sul. No entanto, moradores afirmam que já estavam lá mesmo antes do Plano de Manejo do Parque, em 2018, e do próprio decreto que instituiu o parque, em 2003.
Na terça-feira (17/12), os moradores do local, por meio da Defensoria Pública do Distrito Federal, ajuizaram uma Ação Civil Pública contra a desocupação. Segundo a peça, a desocupação das moradias não segue as diretrizes da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, que define novas regras para desocupação após a pandemia. Segundo a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), é necessário: (i) dar ciência prévia e ouvir os representantes das comunidades afetadas; (ii) conceder prazo razoável para a desocupação pela população envolvida; e (iii) garantir o encaminhamento das pessoas em situação de vulnerabilidade social para abrigos públicos (ou local com condições dignas) ou adotar outra medida eficaz para resguardar o direito à moradia, vedando-se, em qualquer caso, a separação de membros de uma mesma família”.
A Defensoria alega que a comunidade não foi devidamente notificada e que apenas soube da desocupação, que estava marcada para 10 de dezembro, por um funcionário do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) dias antes. Segundo o texto, “ações de cunho remocionista sem prévia conciliação, sem prévias alternativas habitacionais definitivas ou de assistência social efetiva, sem estudos de impacto e sem controle de políticas públicas, constituem uma violência desarrazoada”. A peça também afirma que a defesa não participou da reunião que firmou a data.
Em resposta, o Ibram afirmou que a reunião contou com a presença de todos os órgãos envolvidos diretamente na ação de desocupação, o que não envolve a Defensoria.
Além da poligonal do Parque Ecológico, outra parte da vila consta como uma ocupação no lote 54, pertencente à Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap).
Cultura e tradições populares
A ocupação da Vila Cobra Coral iniciou ainda na década de 1970, quando Luiz Gonzaga do Nascimento passou a ocupar parte do Lote 54, cedido pelo governo do DF. Foi ali que o pioneiro estabeleceu o Terreiro Pai Joaquim de Aruanda. Atualmente, o centro espírita atende mais de 150 pessoas durante as sessões.
Dalto Gracindo está no Centro deste 2009 e é um dos diretores do local. “Esse Centro foi o senhor Luiz que criou com a mulher dele e uma amiga”, conta. “Essa amiga recebeu a entidade do caboclo Cobra Coral, por isso o nome ficou Cobra Coral”.
O diretor conta que o terreiro atende tanto pessoas da comunidade quanto de fora. De 2012 até hoje, quando Dalto começou a contabilizar, 89 mil visitantes já foram antedidos. “A frequência é muito alta. Se a gente tiver que sair daqui, para onde nós vamos?”
“A vida das pessoas está aqui, o neto do seu Luiz nasceu aqui e hoje já é um rapaz de 25 a 30 anos”, aponta. “Aqui não tem como desassociar mais”.
Além do Centro, a comunidade conta ainda com a Capela São Raimundo.
Artur Sinimbu dá aula de capoeira Angola no Espaço Inventado. Há cinco anos, ele passou a morar no espaço do projeto e assumiu os cuidados com a manutenção do espaço, que fica na área delimitada pelo Ibram como parte da poligonal do parque.
“Essa vila cumpre uma função social muito ampla, ela serve a um conjunto de pessoas muito mais do que seus próprios moradores”, destaca. Além das aulas de capoeira, o espaço oferece oficinas que valorizam a herança afro-brasileira e a preservação do meio ambiente, além de promover brincadeiras com as crianças da comunidade.
“A gente tem uma maneira de produzir cultura muito própria, a partir do território, e é isso que as pessoas chamam de cultura popular, porque a cultura popular tem a ver com o povo, e o povo mora em algum lugar”, explica.
Por conta dessa relevância cultural, a Vila aparece retratada no Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB). No texto, o decreto prevê “elaboração de estudo para avaliar a valoração da Vila Cultural Cobra Coral como parte do patrimônio cultural imaterial do Distrito Federal”.
Parque Ecológico
O Parque Multiuso da Asa Sul, hoje Parque Ecológico da Asa Sul, foi instituído em 2003 com objetivo de proteger paisagens naturais, espécies nativas e recursos hídricos. Na época, algumas das residências já estavam no local.
O Plano de Manejo do parque veio anos depois, em 2018. No documento, o Ibram aborda a questão da Vila Cultural, citada no texto como uma ocupação regular que pode ter cerca de 50 anos. O órgão afirma ainda que o número de residências começou a crescer “de forma desordenada” a partir de 2009. Em 2017, segundo o Ibram, constavam 80 ocupações irregulares na poligonal do parque.
Segundo o Plano, foi constatada na vila “ausência de sistema de drenagem de água pluvial, de distribuição de água potável, de rede de esgoto, de coleta de lixo”. Para o Ibram, isso poderia ocasionar crimes ambientais como: “a degradação do solo, o assoreamento de corpos hídricos, a captação irregular de água, a contaminação do lençol freático e a queima e depósito de grande quantidade de detritos, por não haver a coleta e reciclagem dos resíduos sólidos”.
A população da vila, no entanto, contesta. Segundo moradores antigos do local, a comunidade tento contato com o GDF para conseguir condições básicas como saneamento, mas o governo não deu retorno. Eles também afirmaram que não são favoráveis à rápida expansão nos últimos anos, mas que não foi possível conter a ocupação, visto que a área não tinha fiscalização.
Em relação ao conflito territorial, outro trecho do Plano de Manejo, aponta que: “devido à complexidade do conflito envolvido, julga-se que uma possível solução seja o cercamento da poligonal do Parque, excluindo-se a área em questão, até que o conflito seja resolvido. Fato que ajudaria no aumento da sensação de segurança dos frequentadores do Parque. E na contenção de novas ocupações irregulares”.
A disputa ganhou outro capítulo em 2019 com a recategorização do Parque de Multiuso para Ecológico. Mais estrita, a categoria de Parque Ecológico dificulta ainda mais a coexistência da reserva com a comunidade. A estratégia foi proposta pelo Laboratório Periférico da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU-UnB). O Ibram, no entanto, alega que a categoria não permite qualquer tipo de ocupação humana.
Na época, os moradores chegaram a receber a notificação de desocupação, mas a ação foi suspensa por conta da pandemia de covid-19. O Ibram alega que, como foi feita essa notificação em 2019, os moradores já estavam em sobreaviso de que a operação poderia ocorrer “a qualquer momento”. Segundo a autarquia, alguns dos moradores já foram indenizados, mas, ainda assim, se recusaram a deixar o local.
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“Nossa intenção é poder fazer a preservação ambiental, mas também fazer uma retirada humanizada”, destacou a superintendente de Fiscalização, Auditoria e Monitoramento (SUFAM) do Ibram, Simone de Moura. Ela ainda destacou que a data não está completamente firmada.
Nova data
Com a nova desocupação, a comunidade Cobra Coral corre contra o tempo para evitar a operação. As ações, que contam com om apoio de políticos do DF, apostam nos aspectos mais marcantes da vila: a cultura e a tradição cultural.
Por isso, a comunidade criou um perfil oficial para divulgar ações culturais e atos contra a retirada, além de um abaixo-assinado pela permanência da comunidade no local.
A Vila conta ainda com apoio de parlamentares distritais e federais do DF, como a deputada Erika Kokay (PT-DF), que publicou vídeo em defesa da Vila Cultural. A população tenta ainda apoio de organizações da sociedade civil e diálogos com órgãos do governo, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).