Ainda estou aqui

Crônica da cidade: Brasília está pegando fogo

O fantasma do regime autoritário e repressor nos afligiu recentemente com ameaças de golpe de Estado e ataques violentos e covardes que tiveram como alvo a nossa capital

Assisti ao filme Ainda estou aqui em uma sala lotada, em plena segunda-feira. Em meio a diversos filmes do tipo blockbusters, o brasiliense que foi ao shopping optou por um filme brasileiro que está longe de ser uma dessas comédias arrebatadoras protagonizadas por youtubers ou estrelas globais. Os espectadores eram de todas as idades e foram atraídos, assim como mais de um milhão em todo o país, pela história de uma mãe de família que vê o marido ser arrancando de dentro de casa pela ditadura e nunca mais voltar, nem mesmo morto. Um fenômeno que talvez se explique por ser esse um tema que, infelizmente, ainda está aqui.

Assim como na década de 1970 que o longa de Walter Salles revive, nossa democracia vem sendo testada nos últimos anos. O fantasma do regime autoritário e repressor nos afligiu recentemente com ameaças de golpe de Estado e ataques violentos e covardes que tiveram como alvo a nossa capital. Assustadoramente, o 12 de dezembro de 2022 e o 8 de janeiro de 2023 não foram dias criados pela ficção, e podem não ter terminado. Na semana passada, dia 13, coincidentemente no mesmo período do lançamento dessa produção cinematográfica que nos remete ao período mais tenebroso da História do Brasil, um novo atentado surge como sinal amarelo para quem acredita estar transitando pela estrada sem curvas da democracia. Nessa terça-feira (19/11), veio a notícia de que um grupo ligado ao mandato anterior do governo federal planejava matar Lula, Alckmin e Moraes. É preciso estar atento e forte, já dizia Caetano. Tal qual os loucos que a confiscaram com crueldade no passado, ainda há quem busque bloquea-la cometendo crimes e pedindo anistia depois.

Em uma cena do filme, o personagem do ator Humberto Carrão, que representa o jornalista e ativista dos direitos humanos Fritz Utzeri, fala: "Brasília está pegando fogo". Ele se refere ao estado de espírito dos militares que tomaram o poder por vias extremas, diante dos atos de resistência dos militantes defensores do Estado Democrático de Direito, mas também me autoriza a utilizar a frase aqui nesta crônica, como referência ao cidadão que explodiu uma bomba em frente ao STF, um golpe direto contra a própria essência do Estado Democrático de Direito. Analogia válida.

Nas cenas em que Eunice Paiva, interpretada brilhantemente por Fernanda Torres, fica detida por 12 dias ouvindo a trilha sonora de terror que embalava os porões da ditadura, a sala cheia de pessoas no cinema em um silêncio aflitivo me lembrou o sentimento de estarrecimento dos espectadores de cenas como as exibidas pelos telejornais em 12 de dezembro, 8 de janeiro, 13 de novembro e tantas outras datas recentes que foram marcadas pela insanidade antidemocrática. Porque atentar contra o STF não é a liberdade de expressão que os chamados erroneamente de terroristas como o ex-deputado Rubens Paiva, no filme representado por Selton Mello, mas é um gesto afirmativo do desejo do retorno desses tempos de pavor e desumanidade.

Mas Eunice Paiva, que surge na última cena, em sua fase terminal, também no corpo de Fernanda Montenegro, simboliza a resiliência do povo brasileiro. Mesmo diante de adversidades, ela criou sozinha os cinco filhos, formou-se em direito aos 48 anos e lutou até o fim pelo direito de declarar o óbito do marido exterminado pela tortura vigente no regime que muitos ainda relembram com nostalgia e anseio pela retomada. E nós, brasileiras e brasileiros, estamos aqui, firmes e fortes, defendendo nossos valores e princípios.

As longas sessões de aplausos arrancados das plateias nas exibições do filme em festivais ao redor do mundo, me leva a acreditar que, mesmo vivenciando tantas guerras e políticas desumanas, o mundo ainda se emociona com quem não se silencia e resiste ao horror.

 


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