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Justiça

Do assassinato da mulher na BA à prisão no DF: professor ficou 14 anos impune

Igor Azevedo Bomfim matou a tiros a companheira em município baiano. Após alegar "legítima defesa da honra", foi absolvido, mas cumprirá 10 anos em regime fechado depois de novo julgamento. Ele dava aula em escola pública e era síndico de condomínio

A história de Mayara de Souza Lisboa Azevedo, brutalmente interrompida aos 22 anos, mostra a evolução das leis nos últimos anos com a tipificação do feminicídio e expõe o quanto a impunidade na morte de mulheres era persistente. Em 2 de novembro de 2010, a vendedora foi assassinada pelo marido, Igor Azevedo Bomfim, com sete tiros quando saía do banho.

O fato ocorreu no município de Santa Rita de Cássia, a 1 mil km de Salvador (BA). Foram necessários 14 anos para que o assassino fosse preso e começasse a cumprir a pena. A ausência da punição foi baseada na tese desumanizadora “legítima defesa da honra”, julgada inconstitucional somente em agosto de 2023. Igor foi capturado nessa sexta-feira (15/11) pela Polícia Militar no apartamento onde morava com a família, na QI 9 do Guará 1, no Distrito Federal.

Igor se mudou para a capital federal em 2013, pouco tempo depois de ir à julgamento na Bahia e ser absolvido pelo crime bárbaro, mesmo sendo réu confesso. No Distrito Federal, levava uma vida normal, como se nada tivesse acontecido: tinha mulher, filhos, era síndico do prédio onde residia e trabalhava como professor de uma escola pública da região em contrato temporário da Secretaria de Educação (SEEDF), onde dava aulas para alunos especiais.

Mayara e Igor mantinham uma relação conjugal de cerca de 1 ano e 8 meses e não tinham filhos. Igor, por sua vez, já tinha sido casado com outra mulher, com quem teve dois filhos. O Correio obteve acesso a documentos judiciais da época que relatam o antes, durante e depois do brutal assassinato da vendedora. Segundo o inquérito policial, o criminoso desenvolveu um ciúmes obsessivo pela vítima que “extravasava dos limites da normalidade”.

O professor a perseguia, desconfiava da sua fidelidade e monitorava cada passo da vítima. De acordo com a polícia, no dia do crime, em 2 de novembro de 2010, a situação se tornou insustentável depois de uma discussão em que Igor apontou uma arma de fogo para o rosto da companheira durante a madrugada. A mulher, desesperada, pediu que um amigo vigiasse a casa enquanto ela tomava banho.

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Igor saiu da casa e fingiu ir embora. De maneira covarde e em posse de um revólver calibre 38, saltou o muro dos fundos da residência e alcançou Mayara no banheiro. Ainda de toalha, ela foi morta a tiros e Igor fugiu de moto até a fazenda do pai. Depois de 12 dias, o assassino se apresentou à delegacia e confessou todo o crime. Alegou que matou a jovem “em defesa da honra”.

Absolvição

A tese usada pela defesa do réu foi suficiente para ele sair pela porta da frente do fórum. Hoje, inconstitucional, a tese argumentativa “legítima defesa da honra”, era usada em casos de crimes passionais para justificar atos de violência — principalmente assassinatos — cometidos por homens contra mulheres. A doutrina livrou não só Igor da cadeia, mas muitos outros assassinos que tiraram, de maneira covarde, a vida das companheiras (leia Nada legitima o feminicídio).

A impunidade causou revolta na cidade e levou centenas de pessoas às ruas de Santa Rita de Cássia na luta pela Justiça para Mayara. Fotos da época obtidas pela reportagem mostram os manifestantes em frente ao fórum, com faixas e camisetas com a imagem da jovem. “Mayara foi brutalmente assassinada por um ser que dizia amá-la. Esse crime não pode ficar impune”, constava nas faixas.

O Ministério Público do Estado da Bahia recorreu e conseguiu anular o júri. Igor aguardou o segundo julgamento em liberdade e somente em 4 de junho foi condenado, porém, continuou solto até 14 de novembro devido aos sucessivos recursos interpostos no Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJBA) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O mandado de prisão por condenação transitada em julgado foi deferido pela Vara de Jurisdição Plena de Santa Rita de Cássia. A sentença a ser cumprida é de 10 anos, 10 meses e 18 dias pelo art. 121 (homicídio) qualificado.

Nessa sexta-feira (15/11), policiais do Batalhão de Operações Especiais deram cumprimento ao mandado de prisão preventiva expedido pela Justiça do DF contra Igor. Preso, ele deve começar a cumprir a pena em regime inicial fechado.

Professor no DF

Desde fevereiro de 2024, Igor pertence ao quadro funcional, segundo confirmado pela própria Secretaria de Educação ao Correio. No Diário Oficial do DF (DODF), o nome do assassino aparece na lista dos convocados do processo seletivo simplificado para a contratação. O edital é de 2 de janeiro de 2024. “No caso de um professor que se encontra em regime carcerário, o afastamento ocorre de forma imediata. Em caso de condenação, o registro será inserido no sistema, impossibilitando futuras convocações como professor substituto”, argumentou a secretaria.

O documento de convocação dos profissionais faz um alerta aos candidatos que, por acaso, venham a ter impedimentos judiciais ou administrativos. Esses, não estarão habilitados para serem contratados. Mas não foi o que ocorreu com Igor. A reportagem questionou o órgão quanto aos critérios de contratação e verificação de antecedentes criminais para a admissão.

Em nota, a SEEDF, informou que, para esse processo, o edital exige a apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais, entre outros documentos. Ressaltou que a documentação é analisada pela respectiva Regional de Ensino, que verifica a conformidade com os requisitos estabelecidos. “Esclarecemos que as certidões entregues integram a pasta funcional do profissional e, conforme determina a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), são informações protegidas e não podem ser divulgadas, a fim de resguardar o direito à privacidade de qualquer servidor”, finalizou.

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Nada legitima o feminicídio

Por Raoni Maciel, promotor de Justiça e coordenador do Núcleo de Defesa da Vida do Ministério Público do DF (MPDFT)

"O STF declarou, na ação de descumprimento de preceito fundamental nº 779, a inconstitucionalidade das teses de legítima defesa da honra nos crimes violentos contra as mulheres. A decisão monocrática do Ministro Dias Toffoli em fevereiro de 2021 foi referendada e confirmada no mérito. O acórdão do Tribunal Pleno foi publicado em 1º de agosto de 2023.

Nunca houve previsão legal ou constitucional que permitisse a absolvição por legítima defesa da honra. Na verdade, sempre se tratou de construção retórica sem respaldo jurídico. No entanto, encontrava ressonância no sentimento de uma parcela da sociedade brasileira, machista, misógina e violenta. Como os crimes contra a vida são julgados pelos jurados, cidadãos comuns, reunidos em conselho de sentença, a tese era utilizada na sessão plenária de julgamento.

Como nunca foi juridicamente legítima, a absolvição fundada na legítima defesa da honra sempre foi anulável em recurso de apelação ao Tribunal. Isso dava-se mesmo antes da Constituição de 1988, e pode-se citar o famoso caso do assassinato de Ângela Diniz, com réu absolvido num primeiro julgamento em que essa tese foi utilizada, porém submetido a novo julgamento e então condenado.

O que o Supremo Tribunal Federal fez, portanto, não foi apenas dizer que a absolvição é inconstitucional, pois isso seria dizer o óbvio é uma decisão sem nenhuma repercussão jurídica. A decisão diz muito mais, diz que é inconstitucional invocar quaisquer teses que utilizem a honra masculina como legitimação para o cometimento de crimes violentos contra a mulher.

É o próprio discurso, odioso e desumanizador, de que a mulher possa ser responsável por sua morte, que está proibida. Na referida ação, os ministros do Supremo Tribunal Federal interditaram esse discurso, proibiram-no, e o fizeram com a certeza de que o Poder Judiciário dali em diante não deveria sequer permitir que fossem ventiladas as teses de que a mulher pudesse haver, de alguma forma, provocado a violência de que foi vítima.

A sociedade brasileira evoluiu muito, o discurso odioso da tese de legítima defesa da honra encontra pouquíssimo respaldo, e passou a estar proibida sua utilização retórica nos tribunais brasileiros."