"O devedor é execrado da sociedade e do comércio. Visto como a pior pessoa do mundo, quando, na verdade, queremos quitar nossas dívidas. Pegamos (empréstimo) por necessidade". Aos 58 anos, o subtenente da reserva do Corpo de Bombeiros Cid Miguel tenta recolher os cacos de uma vida que se arruinou devido ao endividamento pelo crédito consignado.
Danos financeiros, de saúde, psicológicos, vida conjugal em risco e síndrome do pânico foram resultados de um empréstimo feito em 2018 para custear tratamento e cirurgias de alta complexidade, além de medicamentos caros para a mulher, mas a situação virou uma bola de neve depois que ele renegociou o empréstimo e o banco duplicou o valor da dívida. Nesta reportagem, o Correio expõe relatos de membros das forças de segurança que estão "escravizados" dos empréstimos e buscam uma saída para retomar o controle da vida.
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Com as altas taxas de juros, a dívida de Cid chegou a um total de R$ 250 mil. Boa parte do dinheiro serviu para a compra de remédios para a mulher, que sofre com problemas na visão. Para piorar, a filha dele contraiu dengue, que resultou em uma doença autoimune e os remédios são caríssimos: cada caixa do medicamento custa R$ 4,8 mil e dura 14 dias. "Desde 2012, a Secretaria de Segurança Pública não tem um aumento real do salário. Passamos décadas sem aumento e isso resulta na perda da capacidade de compra. A família cresce e as despesas aumentam."
Pai de dois filhos adolescentes, Cid precisou sustentar a família sozinho, e com a renda já comprometida por causa dos empréstimos. "Meus filhos perderam o emprego por causa da pandemia e minha filha teve de abandonar o curso de odontologia devido às dívidas altas. Hoje, ela faz outra faculdade mais barata", diz. Por três meses, o bombeiro ficou com o saldo zero na conta e teve todo o salário "engolido" pelo banco.
Foi nesse período que o servidor se viu em um beco sem saída. Ele desenvolveu síndrome do pânico, desencadeou hipertensão e outros problemas de saúde e chegou à beira de se divorciar da mulher. Por meses, ele precisou optar pelo remédio que iria tomar para evitar despesas. As compras foram reduzidas, um dos carros da família foi vendido e roupas adquiridas só em caso de urgência. Situações que ele define como constrangedoras. "É humilhante. É claro que quero quitar, mas de maneira decente, sem que o banco retire tudo o que tenho."
Cid conseguiu quitar uma parte significativa da dívida, mas ainda enfrenta um saldo remanescente de R$ 150 mil. O bombeiro acionou a Justiça para impedir que o banco recolhesse automaticamente o valor diretamente de sua conta. Ele espera que, posteriormente, possa negociar com a instituição para limitar o pagamento a até 45% do empréstimo (margem consignável prevista em lei).
Término em 2032
O agente da Polícia Civil Lucas*, 43, sempre sonhou em seguir a carreira na área da segurança pública e foi policial em outro estado e militar no DF. Mas, a desvalorização da carreira, o salário estagnado e as necessidades pessoais fizeram o servidor recorrer aos empréstimos para fechar as contas no fim do mês. Hoje, Lucas "gerencia" três consignados de longas parcelas e tem quase 30% do salário comprometido mensalmente. Em um dos empréstimos, o policial solicitou ao banco R$ 85 mil para usar na reforma da casa e no concerto do carro. A previsão para o término do pagamento do recurso é só em 2032. Para quitar uma parcela ou adiantar o pagamento, Lucas recorre ao serviço voluntário remunerado. "Quando preciso de um valor maior, faço o voluntário, mas serve também para pagar o consignado", desabafa.
As dificuldades financeiras impedem Lucas de viajar, sair para jantar e impactam diretamente em ter momentos de lazer com qualidade. "Quando saio daqui (de Brasília), vou para a Chapada dos Veadeiros com minha mulher. Meus filhos ficam na casa de amigos. No DF, costumo ir ao Parque da Cidade, que é de graça."
Lucas espera por uma melhora significativa na carreira. Policiais civis intensificam a pressão na tentativa de obter a paridade com a Polícia Federal (PF). Em janeiro de 2024, os policiais civis, militares e bombeiros tiveram 9% de reajuste referente à segunda parcela da recomposição de 18%. Para o agente, nessa situação, infelizmente o servidor precisará viver no aperto. "Não ter aumento é ter uma piora na qualidade de vida por causa da inflação."
"Não pensei nas consequências"
Isaías* é sargento da PMDF. Experiente e reservado, com 19 anos de carreira na corporação, nunca imaginou que acumularia dívidas ao ponto de precisar recorrer ao empréstimo consignado. Pai de três meninas, ele enfrentou uma situação de emergência que exigiu uma cirurgia urgente em um hospital particular.
Segundo ele, o episódio ocorreu há sete anos. A única forma de arcar com os custos foi contratar um consignado, logo que o plano de saúde da corporação não cobriu. "Lembro que alguns colegas disseram que eram parcelas fixas, descontadas diretamente na folha de pagamento. Naquele momento, de verdade, eu nem pensei nas consequências. Só fiz porque era questão de vida ou morte; era a vida da minha filha", explica.
No início, o pagamento das parcelas parecia controlável, mas, com o tempo, a situação se agravou. No sexto mês, os descontos passaram a comprometer grande parte do salário, tornando o orçamento familiar insustentável. "Imagine eu, como pai, com minha filha precisando de tratamento, que não era barato, e um desconto enorme no meu contracheque. Foi e ainda é um pesadelo, mesmo conseguindo contornar a situação, já que 40% da minha renda está comprometida", relata.
Ele admite que as dificuldades financeiras trouxeram ansiedade e tristeza, especialmente após a filha mais velha ingressar em uma faculdade particular de enfermagem. Incapaz de contribuir com as mensalidades, José vê a filha precisar usar parte do próprio salário para pagar o curso. "Eu sofro com isso todos os dias. Quando ela era mais nova, prometi que ajudaria, e hoje mal consigo me ajudar. Minha esposa contribui, mas é doloroso ver minha filha arcar com esses custos. Às vezes penso que sou um bom profissional, pois esses problemas certamente afetariam o desempenho no trabalho em uma outra pessoa", desabafa.
Educação
O uso crescente de empréstimos consignados entre as forças de segurança reflete não só a realidade econômica desafiadora, mas também uma lacuna nas políticas de apoio e amparo psicológico para esses profissionais. "Muitos se encontram em situação de vulnerabilidade emocional, agravada pela necessidade de atuar sob condições de alto estresse e, em alguns casos, com risco de vida", avalia o psicólogo especialista em cognição humana e Terapia Comportamental Dialética (DBT) Vinícius Guimarães Dornelles.
Dornelles acrescenta que a preocupação com dívidas pode afetar a capacidade de concentração e a tomada de decisões seguras, prejudicando o desempenho profissional e colocando em risco a própria segurança e a de terceiros. "Em um contexto que exige controle emocional e prontidão para crises, o acúmulo de dívidas representa um fardo que agrava transtornos como ansiedade e depressão, podendo levar à exaustão psicológica e, em casos extremos, ao autoextermínio", ressalta.
Ao Correio, a Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF), as Polícias Militar, Civil e o Corpo de Bombeiros se posicionaram acerca das medidas implementadas para auxiliar na saúde do servidor. O CBMDF reforçou que promove, frequentemente, programas de educação financeira aos militares. A iniciativa trabalha a saúde financeira na perspectiva biopsicossocial, por meio de conceitos, técnicas e educação para a tomada de decisões e consumo responsáveis.
Na PMDF, são ministradas palestras sobre saúde financeira e orçamentária nos cursos iniciais e ascensão de carreira. "A Polícia Militar do Distrito Federal, quanto à saúde, oferece um sistema de suporte contínuo para atender ao bem-estar físico, emocional e espiritual de seus policiais e familiares."
No âmbito da Polícia Civil, é desenvolvido o Programa de Preparação para a Aposentadoria (PPA), projeto estratégico de valorização do servidor, auxiliando-o desde o seu ingresso na PCDF até a aposentadoria. O curso se resume em seis workshops presenciais de até cinco horas de duração. Entre os temas abordados, estão: aspectos financeiros, educação financeira e reflexões sobre paradigmas relacionados à finanças.
A SSP-DF garante o investimento na saúde mental dos servidores com a implementação de programas voltados à qualidade de vida no trabalho e ao aperfeiçoamento das habilidades, além do bem-estar físico e emocional.
Opinião
"Quando falamos de superendividamento nas forças de segurança, estamos falando de servidores com quase 100% do salário comprometido. A lei federal determina que o consignado que vai no contracheque é de até 45%, mas os bancos emprestam os outros 55% na conta-corrente. Venho quebrando a cabeça para pedir a alteração da lei para que o servidor possa escolher o banco de sua conveniência. Consegui aprovar o projeto na Câmara para garantir que os empréstimos tomados por servidores públicos não comprometam toda a renda dos trabalhadores, o governador vetou, retornou, foi aprovado, mas a instituição financeira apresentou várias negociações e fomos surpreendidos com a notícia de que a lei é inconstitucional. Voltamos à estaca zero. Nós temos incentivado os comandos a promoverem palestras. Infelizmente, o superendividamento é um problema de saúde".
Deputado distrital Roosevelt Vilela (PL)