Para mim, Brasília tem dois meses característicos. O primeiro é abril, quando a seca começa a dar seus sinais iniciais, deixando o céu mais azul e embelezando nossas quadras amplas com o florescer dos ipês coloridos, ainda que os gramados percam o viço verde natural. É o aniversário da cidade e o friozinho que o outono traz deixa o cenário mais charmoso e elegante, o que condiz com a classuda capital do país.
Mas esse não é o período com mais requinte...
O segundo mês que eu considero tipicamente brasiliense — esse sim, com uma elegância solene — é novembro. Por aqui, a chuva dá o tom. Ainda que sejam incômodas, elas ainda não se apresentam com aquelas turbulências aquáticas dos temporais do início do ano. Ao contrário: as precipitações do penúltimo recorte de dias do ano têm, para mim, um gostinho de nostalgia com cheiro de garoa e pipoca de cinema.
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Muito dessa magia que se solidifica nesse cenário pluvial tem uma razão muito específica: o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Conheci a referida mostra cinematográfica logo no meu primeiro ano no Distrito Federal. A partir de 2004, participar do evento tornou-se uma expectativa que pontuou os meus anos. Frequentador do Cine Brasília, sempre assisti bons filmes que entram em cartaz no local e, a cada sessão ordinária, eu fico observando a sala de exibição vazia, relembrando os momentos gloriosos que tiveram o espaço localizado na 106/107 Sul como cenário. E lá se vão 20 anos...
As cenas se repetiam. Nas exibições de filmes do festival, sempre lotadas, com gente saindo pelo ladrão, havia aquele glamour de um Oscar. Dos mestres de cerimônia que subiam ao palco, anunciando a mostra da noite e chamando a equipe para falar ao microfone, aos aplausos e vaias que davam o termômetro das produções. No lado externo, a praça de alimentação montada em uma estrutura especialmente instalada para ser palco do encontro de cinéfilos e cineastas do Brasil inteiro, com artistas circulando entre fãs, conversando amenidades, trocando figurinhas sobre os trabalhos e estabelecendo networking. Enquanto isso, do lado de fora, a chuva inevitavelmente caía...
Eu não me recordo de um único festival de cinema realizado em novembro que não fosse marcado pela chuva. O estacionamento do Cine Brasília sempre abarrotado e os espectadores precisando parar os carros nas quadras residenciais que, geralmente, têm alguns espaços cercados para garantir o acesso e o conforto dos moradores. A logística dificultada para o Teatro Nacional e o Hotel Nacional — que dividiam com o cinema a tríade de ambientes reservados ao festival. E a festa oficial — o ápice da luxúria cinematográfica —, realizada em uma casa no Park Way, quase sempre trazia a capa de chuva como parte do dress code.
Um transtorno, sim, porém, agridoce. Mas o tempo chuvoso não pode ficar de fora dos elementos essenciais que fazem do FestBrasília o evento memorável que sempre foi.
Após algumas intervenções que se fizeram necessárias — como a pandemia que obrigou a mostra a ser on-line e as interdições do teatro e do hotel, que representam grande parte do glamour desse tapete vermelho candango —, em 2024, o evento vem com a promessa de retomada do brilho de outrora. Nada mais oportuno em se tratando do ano em que, graças ao Ainda estou aqui de Walter Salles, o mundo volta a enxergar a produção cinematográfica tupiniquim com a mesma reverência de quando, logo após a retomada que marcou a década de 1990, Central do Brasil e Fernanda Montenegro — a primeira atriz a ganhar o Candango em Brasília — desfilaram pelo red carpet de Hollywood.
Para o próximo dia 30, está previsto o início de uma mostra de 80 filmes em uma nova estrutura que amplia o local de exibição e a promoção das atividades paralelas, que incluem palestras e áreas de debate e de negociação entre profissionais da sétima arte. A homenageada desta edição será Zezé Motta, uma lenda viva da dramaturgia que será para sempre reverenciada por sua Xica da Silva, com direito a exibição do clássico pelo qual ela foi coroada como melhor atriz em 1976. Mas também haverá homenagem a Mallu Moraes, que já não poderá circular pelo evento, mas deixou a sua marca em cada pedacinho do Cine Brasília. E, por fim, não menos importante, há uma sinalização de que o grande laureado do ano seja Vladimir Carvalho, que saiu de cena no mês passado, mas, por deixar um imenso legado ao cinema nacional, terá seu nome batizando a sala de exibição principal do FestBrasília que ele tanto abraçou em vida.
Tudo isso sendo abençoado com muita luz, câmera e chuva.
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