"Você não tem o perfil da empresa", foi o que a operadora de máquinas e estudante de engenharia Ffrancine de Moura Pedra, 25 anos, ouviu mais de uma vez ao participar de processos seletivos na busca por um emprego. A atitude tomada por empresas que a entrevistaram sem mesmo realizar qualquer tipo de teste foi atribuída por Ffrancine à cor de sua pele. O sentimento de exclusão do mercado de trabalho por questões raciais é compartilhado por outras pessoas negras ouvidas pelo Correio.
A Pesquisa de Emprego e Desemprego no Distrito Federal (PED-DF), realizada pelo Institutode Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF) e pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos (Dieese), confirma as barreiras sentidas por elas. Segundo o estudo, que traçou a situação dos trabalhadores negros do Distrito Federal, 65% da população apta a exercer alguma atividade econômica era formada por pessoas negras no DF, em2022. Por outro lado, essa população representava 59,8% da população inativa, isto é, as pessoasque não exerciam atividade remunerada.
"Infelizmente, essas situações carregavam um tom de preconceito e vinham, muitas vezes, de pessoas brancas. Claro que não podemos generalizar, mas esses momentos marcaram minha jornada", desabafa Ffrancine, sobre os momentos em que teve as portas fechadas no mercado de trabalho ao ouvir que não tinha o perfil da empresa. "Hoje, consegui superar as barreiras que encontrei pelo caminho na minha trajetória profissional e estou empregada fazendo algo que gosto", completa ela, que trabalha como operadora de máquinas na empresa Global Fruit. "Eu me interessei pelo trabalho e já tive duas promoções. Inclusive, curso engenharia elétrica", conclui.
Advogada trabalhista na A.C. Burlamaqui Consultores, Fernanda Corrêa observa que uma outra geração tem assumido a gerência das empresas e, com isso, uma nova visão racial toma forma. "São pessoas que foram expostas a debates raciais e têm conhecimento pela mídia até de crimes envolvendo a questão racial. Essa realidade mais confrontadora fez com que muitos se envolvam numa causa antirracista e propaguem a diversidade racial", pontua.
A especialista avalia, entretanto, que ainda são necessários avanços para que haja uma equidade de oportunidades e a população negra seja valorizada plenamente no mercado de trabalho. "As empresas precisam ter como cultura a inclusão dessas pessoas apoiando em suas possíveis dificuldades. É necessário ver se essa pessoa precisa de um curso de línguas, informática, ou alguma especialidade que aquele cargo exige, que talvez pelo seu histórico de vida não foi possível alcançar", comenta. "A proposta não deve ser inclusão a todo custo, e sim querer mudar uma realidade como visão empresarial, como contribuição para diminuir a cultura racista existente", completa.
Dhébora Paiano, 44, também já sofreu preconceito no ambiente de trabalho, mas enxerga uma melhora no mercado com relação às pessoas negras. "Trabalho em uma empresa que preza por uma política forte de diversidade e isso faz toda diferença", afirma a analista de suprimentos do Sabin. "Já trabalhei em outros lugares na área administrativa e os negros sempre eram minoria. Hoje, só na minha área somos cinco pessoas negras. Creio que minha formação e experiência me ajudaram a conseguir boas colocações, mas acredito que, de maneira geral, o mercado melhorou nesse aspecto", analisa.
Preconceito
Apesar de hoje atuar em sua área de expertise, Lilia Kezia Lopes, 36, já sentiu na pele o preconceito racial no trabalho. "Eu já trabalhei como professora de canto e cantora em um grupo de coral e percebia o racismo velado das pessoas. Hoje, vejo que faz diferença trabalhar em um lugar que conta com um Comitê de Diversidade e Inclusão. Eu me sinto vista", afirma ela, que atua como analista de responsabilidade social no Instituto Bancorbrás.
Rubson Osano de Souza, 35, foi outro que sofreu preconceito no ambiente de trabalho e teve dificuldade de conseguir emprego em virtude da cor da pele. "Já trabalhei como empacotador de supermercado e cheguei a ouvir de uma gestora: 'Ei pretinho, se a empresa jogasse o seu salário no lixo seria melhor empregado'. Eu me senti muito mal", relata. "Isso acabou gerando em mim uma vontade de crescer e me desenvolver e mostrar para aquela gestora que tenho valor", conta Rubson, que atualmente trabalha como coordenador de seleção em uma empresa de recursos humanos.
Yverson Valentim, 23, busca na qualificação uma forma de diminuir as barreiras enfrentadas por ele devido à cor da pele. À procura de uma colocação no mercado, o jovem conta que já foi maltratado quando trabalhava como auxiliar de serviços gerais. "O gerente do restaurante onde eu trabalhava fazia abuso psicológico comigo e já me chamou de várias coisas, algo que não fazia com outras pessoas não negras", conta Yverson, que se formou em análise de sistemas e busca uma oportunidade em sua área de formação.
Mentalidade social
Estudo do Dieese mostra que os negros são maioria em funções como construção civil, comércio, reparação, serviços (veja quadro) e indústria de transformação. Membro do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros da Universidade de Brasília (UnB) e professor da pós de Direitos Humanos, Marcos Moreira acredita que toda a lógica da economia precisa ser rediscutida para que haja justiça racial no mercado de trabalho. "A origem da palavra economia já traz um conceito racista. Oikos significa casa e nomos significa lei. Aristóteles deixou claro que quem comanda a casa é o homem branco. A economia baseada nesse conceito é prejudicial", observa. "A classe operária negra não é vista como qualquer outra, ela é vista como reserva diante do trabalhador branco, que é privilegiado. Isso leva negros a empregos clandestinos, informais", acrescenta.
Moreira pontua que a maneira como a sociedade enxerga pessoas negras se reflete em preconceitos por parte das empresas. "Negros são colocados em posições de violência e arrogância. Antes de serem implementadas políticas públicas para alterar a situação da população negra no mercado de trabalho, é preciso haver uma mudança de mentalidade por parte da sociedade", salienta.
Consultora de Recursos Humanos e gerente de Gente & Gestão da empresa Global Fruit, Juliana Barbieri avalia que o maior desafio hoje é o letramento para lideranças e colaboradores no sentido de entenderem a importância da diversidade e da equidade racial nas empresas. "É importante que as pessoas percebam viéses inconscientes de preconceito. Quando a empresa decide fortalecer a cultura de igualdade, respeito e oportunidade, é possível atingir um equilíbrio nas promoções e contratações", analisa. "É preciso criar oportunidades afirmativas. De qualquer forma, eu enxergo uma evolução no aspecto de inclusão social nas empresas. Vejo cada vez mais empresários e líderes de recursos humanos entendendo esse papel social", destaca.
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