LUTO NA ARTE

Morre a artista plástica Ailema Bianchetti, referência em gravuras realistas

Ailema Bianchetti morreu nesta quinta-feira (31/10), aos 98 anos, em decorrência de uma pneumonia. Ela foi referência em gravuras realistas e pioneira de Brasília. Não haverá velório e apenas a família vai participar da cerimônia de cremação do corpo

Morreu na madrugada desta quinta-feira (31/10), aos 98 anos a artista plástica Ailema Bianchetti. A artista foi referência em gravuras realistas para o mundo todo e fundadora da escola de artes Centro de Realização Criadora em Brasília. 

Ailema foi casada com o também artista plástico Glênio Bianchetti, que morreu em 2014.

Natural do Rio Grande do Sul, Ailema foi pioneira de Brasília e seguiu sendo nome forte nas artes plásticas até o final da vida.

Nos anos 60 se mudou para Brasília acompanhada do marido Glênio Bianchetti e dos seis filhos, pequenos. O mais velho tinha 9 anos na época. Quando a família se mudou para a capital federal foi morar na 103 Sul. "Nem tinha W3 ainda. A cidade parecia um canteiro de obras a céu aberto", contou Ailema ao Correio em 2012.

A mudança foi o pedido do professor Darcy Ribeiro. A missão era ajudar na construção acadêmica da Universidade de Brasília, compondo o primeiro corpo docente da universidade.

Durante a ditadura militar, Ailema sofreu com a ausência do marido, levado pelos militares em 1964. Por 27 dias, o professor Glênio Bianchetti ficou preso — junto com outros 20 colegas da UnB. Um ano depois, os professores ficaram sabendo de uma lista de demissão que incluía todos os coordenadores de curso. Foi então que, como último grito contra a perseguição militar, mais de 200 professores resolveram pedir demissão coletiva. Glênio Bianchetti foi um deles", contou Ailema ao Correio em 2012.

Ailema e Glênio passaram então, a se dedicar exclusivamente às artes plásticas e mais tarde, o professor voltou a lecionar na UnB.

Em 2018, Ailema Bianchetti participou do documentário Grupo de Bagé que conta a história de um dos mais importantes movimentos artísticos do sul do país, que ajudou a popularizar a arte da gravura realista expondo problemas sociais.

Gustavo Moreno/CB/D.A Press - Ailema no acervo do marido Glênio Bianchetti, registro de 2014

Escola de arte-educação

Com Glênio Bianchetti, Ailema participou do Clube da Gravura de Porto Alegre, nos anos 1950, do qual faziam parte nomes como Glauco Rodrigues, Carlos Scliar, Vasco Prado e Danúbio Gonçalves. Em Brasília, com Maria do Socorro Coutinho, fundou o Cresça, uma escola de arte-educação que ajudou a formar gerações de artistas e professores. "A história da cidade começa também com a Ailema. Ela criou metodologias próprias e formou uma geração de arte-educadores, uma primeira geração", conta a crítica e curadora Renata Azambuja, que frequentou a casa de Ailema e Glênio durante toda a infância.

"Naquele momento, arte-educador não era a mesma coisa que é hoje, não existia bacharelado, só a licenciatura, então, as pessoas eram formadas para serem professores, mas, ao mesmo tempo, artistas. O papel da Ailema não era só formar educadores, mas artistas que pensam a questão do ensino, da prática e da teoria, tudo junto. Ela agregou muita gente", recorda Renata.

Para a crítica e professora Marília Panitz, o Cresça foi um divisor de águas na história da arte brasiliense. "O Cresça veio com a força toda, era um projeto de uma escola livre de arte dentro do espírito da educação expressionista", explica Marília, que começou a trabalhar na escola em 1980, como estagiária, e se tornou professora, lecionando até a venda da instituição para um grupo de educação, em 1990.

Muitos nomes emblemáticos das artes na cidade passaram pela escola, incluindo Hugo Rodas, que teve no Cresça o primeiro emprego com carteira assinada no Brasil. "Ailema, para mim, é grande, uma pessoa rara, que tive o enorme prazer de conhecer muito jovem e aprender a trabalhar com ela. A gente desenvolveu laços afetivos muito fortes e uma cumplicidade", diz.

Ana Rayssa/Esp. CB/D.A Press - Ailema de Bianchetti, registro feito em 2014

Utopia

Renata Azambuja destaca ainda a importância de Ailema na catalogação da obra de Glênio. Durante toda a vida, a gravadora ajudou a organizou o espólio intelectual e material do marido. "Poucas pessoas da geração dela têm tudo tão organizado. Ela, de uma certa forma, também foi produtora do Glênio, sempre teve um papel muito ativo de várias formas. E era uma voz sempre presente em todos os eventos. Até agora, mesmo em cadeira de rodas, estava participando, ia para cima e para baixo. E era uma pessoa que tinha opinião", observa.

A escritora Ana Maria Lopes, que esteve com a família na manhã desta quinta-feira (31/~10), lembrou que Ailema teve uma vida intensa. "Apesar de a gente saber que foi numa paz muito grande e viveu uma vida riquíssima intensa, viveu um grande amor com o Glênio, mas nunca à sombra, sempre produtiva", diz. O crítico de cinema Sérgio Moriconi também era uma espécie de agregado da família Bianchetti. Filho de uma professora de artes, ele define Ailema como uma das mentes pioneiras que topou a utopia de construir a cena artística da capital, na década de 1960. 

"Quando penso neles (Ailema e Glênio), é um pouco uma Brasília que conheci e vivi, muito próxima daquela utopia do projeto inicial de pessoas superinteressantes. É isso que ela representa para mim. Fazia parte desses pioneiros que vieram com um sonho utópico. Isso é o que mais dói quando vejo pessoas como ela desaparecerem, é como se fosse uma parte da cidade que acabou", lamenta.

Ailema Bianchetti deixa seis filhos, 16 netos e seis bisnetos. Não haverá velório e apenas a família vai participar da cerimônia de cremação do corpo. Uma missa deve ser realizada durante a próxima semana, mas ainda não há data nem local definidos. 

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