"Às vezes, quando vou dormir, choro em silêncio, lembrando da minha mãe." A frase é de Amanda (nome fictício), 20 anos, filha de uma das 18 mulheres que foram vítimas de feminicídio no Distrito Federal em 2024. Ela é uma das 403 pessoas que ficaram órfãs por causa desse crime bárbaro, de 2015 até 30 de setembro deste ano, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF) — 262 são menores de idade e 141 têm 18 anos ou mais.
De acordo com Amanda, o impacto da morte da mãe foi grande. "Não só para mim e meus dois irmãos, mas para todos os familiares", afirma. "Dura até hoje. Até porque não foi algo que estávamos esperando. Um dia está tudo bem e, no outro, recebemos a notícia dessa tragédia", acrescenta a jovem.
A morte da mãe fez com que ela se aproximasse mais dos irmãos. "Estamos bem, apesar do sofrimento com a perda repentina. Graças a Deus temos familiares que nos ajudaram muito. O mais novo está morando com o pai dele, assim como o de 15 anos. Eu não tenho familiares aqui em Brasília, então fiquei com a família do pai do meu filho", relata.
Amanda diz que tenta ser forte pelos irmãos, mas, quando está sozinha, costuma "botar para fora" o que sente. "Minha mãe era minha vida, era mãe e pai pra mim, tenho muito orgulho dela. Sempre batalhadora para dar tudo de bom para mim e meus irmãos. Era nossa heroína e sempre estará em nossos corações", descreve.
Assistência imediata
Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança, Adolescente e Juventude da OAB-DF, Charles Bicca destaca que o dever de proteger as crianças e os adolescentes não é só da família, mas também da sociedade e do Estado. "Isso está muito claro no Art 227 da Constituição Federal e esses direitos devem ser efetivados com absoluta prioridade", aponta.
"Por isso, também é dever do Estado implementar políticas públicas que ajudem a acolher os órfãos do feminicídio", comenta Bicca. De acordo com o advogado, a atuação dos órgãos tem que ser conjunta, formando uma rede. "Isso agiliza os fluxos de atendimento e concessão dos benefícios a esses órfãos, que estão em um momento de vulnerabilidade", avalia.
Andréia Limeira Waihrich, advogada especialista em violência de gênero e violência contra criança, afirma que a sociedade deve criar redes de apoio comunitário, oferecendo suporte psicológico, educacional e financeiro aos órfãos do feminicídio. "É crucial promover a conscientização sobre a violência de gênero e incentivar o voluntariado e a solidariedade para integrar essas crianças em ambientes seguros e acolhedores", observa.
De acordo com a especialista, o governo deve implementar políticas de proteção social que garantam assistência imediata e contínua aos órfãos, incluindo acesso a cuidados psicológicos, educação e moradia. "As políticas públicas atuais enfrentam desafios significativos no acolhimento dos órfãos do feminicídio", ressalta Andréia (confira o quadro).
Suporte
Segundo Amanda, um dos irmãos, o de 15 anos, foi o que mais sentiu a perda da mãe, inicialmente. "Ele ficou muito tempo sem conseguir dormir e teve que tomar remédio para ajudar no sono", ressalta. Por isso, Amanda e os dois irmãos foram incluídos em um dos programas do Governo do Distrito Federal (GDF) voltados aos órfãos do feminicídio, o programa Acolher Eles e Elas (veja detalhes em Serviço), ativo desde dezembro de 2023, que atende 153 crianças e jovens, de acordo com dados da Secretaria da Mulher (SMDF).
A secretária da pasta, Giselle Ferreira, ressalta que, além da ajuda financeira, de um salário mínimo por órfão, o programa oferece atendimento psicossocial. "Nada substitui uma mãe, mas o Estado tem que estar presente para dar suporte e tentar quebrar esse ciclo que esses jovens, que também são vítimas, estão passando", pontua. "A gente não quer que exista nenhum órfão, mas, enquanto houver, daremos esse apoio", garante Giselle.
De acordo com o secretário de Segurança Pública do DF, Sandro Avelar, os órgãos governamentais fazem o que é possível para combater os feminicídios. "Tentamos nos antecipar aos casos mais graves dando, por exemplo, aluguel social para as mulheres que são vítimas de violência, mas que não têm condição financeira para sair de casa, fazendo com que elas continuem com o autor", explica. "O auxílio destinado aos órfãos do feminicídio demonstra a nossa preocupação em fazer o que está ao nosso alcance, para que o DF seja uma referência para o país", acrescenta Avelar.
Outro programa do GDF, o Direito Delas, da Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejus), oferece acompanhamento psicossocial, por meio da Subsecretaria de Apoio a Vítimas de Violência (Subav), para os órfãos beneficiários do programa Acolher Eles e Elas. A secretária da pasta, Marcela Passamani, ressalta que isso é essencial, pois oferece o suporte emocional e psicológico necessário para quem enfrenta esses traumas profundos. "Os núcleos do Direitos Delas criam um ambiente seguro de acolhimento, promovem a resiliência por meio de intervenções específicas e fortalecem redes de apoio com familiares e comunidades. Além disso, trabalham ativamente para prevenir a revitimização", detalha.
Feminicídio zero
Mesmo destacando a importância dos programas do GDF, a secretária da Mulher, Giselle Ferreira, comenta que a ideia é que o Acolher Eles e Elas "acabe". "O programa teve data para iniciar, mas queremos que tenha data para terminar, pois queremos chegar ao feminicídio zero no DF", afirma.
"Para isso, trabalhamos com a prevenção, criando equipamentos públicos para nos aproximar ainda mais da mulher, além de campanhas voltadas para homens, para que eles entendam que as mulheres não são posse", pontua Gisele.
Sandro Avelar, gestor da SSP-DF, destaca que a pasta também tem esse "sonho". "Enquanto houver um crime desses por aqui, não teremos o que comemorar, por mais que os índices estejam caindo", aponta o secretário.