Eu tinha certeza sobre qual seria o tema desta crônica. Era uma quarta-feira e eu tinha a certeza que paira sobre o universo dos ingênuos de que eu já sabia o tema da crônica da outra semana. Uma certeza inútil, rapidamente engolida pelo destino.
Não havia como deixar de homenagear Antonio Cícero, grande poeta e escritor do país. Ele antropofagizou sentimentos. Transformou amor em arte. Colocou no papel a subjetividade dos romances. Tinha talento, repertório e sensibilidade. Criou mundos em que nada de mal nos alcança.
Para não virar prisioneiro de um cérebro que não respondia mais à qualidade e à sutileza de suas reflexões, decidiu interromper a angústia e voar para longe da solidão do esquecimento. Esta crônica seria uma homenagem singela ao seu legado.
Mas a notícia da morte de Vladimir Carvalho me pegou — assim como a toda a cidade — desarmada. Um peso sobre o peito que, simultaneamente, é tomado por um vazio. Havíamos nos encontrado poucos meses antes, e ele estava alegre, carregava um sorriso gentil e iluminado.
A esta altura, eu sabia que ele era um leitor destas crônicas da cidade, pois o encontrei em um evento no jornal, ao lado do professor José Carlos Coutinho, e ambos contaram que eram audiência cativa deste espaço — um privilégio e tanto que fez o orgulho e a felicidade quase não caberem em mim.
O segundo encontro, a que me referia inicialmente, ocorreu na festa de uma querida amiga em comum. Nós nos esbarramos porque minha caçula tinha tropeçado e caído no chão. Ele, preocupado, correu para ajudar a criança. Trocamos algumas ideias e até marcamos uma entrevista para uma matéria sobre a trajetória dele como professor.
O destino não permitiu esse novo reencontro, mas o coração pode seguir aliviado por ter tido a chance de conviver com um mestre que virou referência para gerações. É como bem escreveu Severino Francisco, meu colega cronista e amigo de Vladimir, sobre a marca que o cineasta deixou na cidade: “Ele é épico e a capital modernista, também. Em Brasília, reencontrou a aventura de redescobrir e refazer o Brasil, com as grandezas, mas também com as contradições e mazelas exasperantes”.
No fim, Vladimir carregava consigo a mesma poesia de Antonio Cícero. Sua luta para manter o acervo que juntou por décadas com o objetivo de preservar a memória do cinema de Brasília e a da própria capital é a materialização do poema clássico do escritor, Guardar. Deixo aqui o texto e um vídeo, com leitura do poeta:
Guardar
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
Assista ao vídeo: