A doação de órgãos é um ato de amor que pode ser realizado ainda em vida. O Brasil é o segundo colocado em transplantes do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Entretanto, a luta de quem espera é uma corrida contra o tempo. Entre a demanda por órgãos e a oferta compatível, não é possível mensurar o tempo, o que acaba gerando filas que nunca se esgotam.
No Distrito Federal, há 1.616 pessoas aguardando transplantes de rim, córnea, coração e fígado. A fila de espera para receber um rim é a mais longa, com 829 pacientes aguardando. Segundo estatística do Ministério da Saúde, o rim é o órgão mais demandado também nacionalmente, com 41.278 pessoas aguardando. Série histórica divulgada pela pasta mostra que 2023 teve o maior número de transplantes realizados no DF (898) desde 2001, um aumento de 25,2% em comparação a 2019 (717). Hoje, o Distrito Federal é a 11ª unidade federativa com lista de espera mais longa para realização de transplantes.
Cirurgião e coordenador do Centro Cirúrgico do Sírio Libanês, Lucio Lucas Pereira explica que o rim é o órgão mais demandado por conta de doenças que acometem boa parte da população. "A insuficiência renal é causada, entre outras, por duas patologias bem prevalentes na população, o diabetes e a hipertensão arterial. Isso faz com que ocorram mais casos de falência renal do que de outros órgãos", destacou.
Apesar de não significar uma cura, segundo especialistas, o transplante é a melhor alternativa de tratamento para pacientes portadores de doença renal crônica avançada, principalmente os que estão em suporte dialítico. "O paciente deve manter cuidados, como uso regular e correto das medicações, ingestão de água adequada, alimentação saudável e prática de atividades físicas", explica Hellen Siqueira, nefrologista do Hospital Brasília Águas Claras.
Quanto às possíveis complicações da cirurgia, os riscos, como doenças infecciosas, cardiovasculares ou até mesmo o óbito, são maiores em pessoas que fazem apenas hemodiálise do que nas pessoas que foram submetidas ao transplante.
Urologista do Hospital Brasília Águas Claras, da rede Dasa, Fransber Rodrigues explica que, para a realização do transplante de rim, é necessária uma compatibilidade de tipo sanguíneo. "Em caso de doadores vivos, a grande maioria são doadores da família, mas existem casos em que amigos doam. São processos mais complexos, passam por autorização judicial", esclarece.
Outra forma de doação de rim é o transplante cruzado, que acontece quando doadores da mesma família não têm compatibilidade. "Hoje, no Brasil, existe um banco de dados de vários candidatos a receber um rim e dos seus doadores. Às vezes, o doador do 'João' não pode doar para o João, mas pode doar para o José; e o doador do José não pode doar para o José, mas pode doar para o João. Então, eles fazem essa doação cruzada", detalha o urologista Fransber Rodrigues. "Esses são casos muito específicos, de pessoas que fazem parte de um banco de dados. É preciso que se encontrem as compatibilidades adequadas. Não basta a pessoa querer para poder fazer isso", complementa.
"O transplante renal devolve a autonomia e permite uma nova oportunidade de vida plena para pessoas que vivem com disfunção renal em diálise. O impacto é positivo no bem-estar físico, social, emocional, além de prolongar a expectativa de vida e reduzir as complicações associadas à diálise crônica", conclui a nefrologista Hellen Siqueira.
Ato de amor
É o caso de Júlio Dias, 27 anos, que doou um rim para a irmã Priscylla Dias, 35, devolvendo qualidade de vida a ela em um ato de afeto e solidariedade. O transplante renal pode ser realizado tanto por doador falecido como consanguíneo, ou até mesmo por pessoas sem relação de parentesco.
Os rins de Priscylla começaram a falhar em 2020, quando ela pegou covid-19. Desde então, a mulher começou a fazer hemodiálise e só parou em setembro deste ano, quando recebeu o transplante do órgão. "A covid afetou meus rins e precisei começar o tratamento de hemodiálise. Para mim, foi difícil aceitar que a minha vida iria mudar por completo a partir daquele momento, mas meu marido e minha família foram minha fortaleza", conta.
"Sou técnica de enfermagem, precisei ser deslocada para o trabalho administrativo porque não estava conseguindo conciliar o tratamento com o trabalho, pois fazia quatro horas de hemodiálise por dia e passava muito mal. Passei por várias internações, cirurgias, fila de transplante e a espera angustiante por uma doação", relatou.
"Desde que iniciou a hemodiálise, sua qualidade de vida reduziu bastante. É um tratamento extremamente exaustivo. Mesmo sendo jovem, Priscylla sofreu as limitações e consequências que a doença renal avançada pode impor aos pacientes portadores", comentou a nefrologista do Hospital Brasília Águas Claras Hellen Siqueira.
O irmão de Priscylla, Júlio Dias, sempre demonstrou vontade de ajudar a irmã. Ele chegou a manifestar a vontade de doar o órgão a ela, mas não foi possível a princípio. "Ele não tinha apoio da esposa e isso o impediu naquele momento", disse Priscylla. "Quando descobri que minha irmã estava internada pela primeira vez foi como se o meu chão sumisse. Fiquei com muito medo de perdê-la quando soube que a covid afetou os rins dela. Comecei a pensar em doar, mas como não tive o apoio da minha ex-esposa na época, eu desanimei", completou o irmão.
Mas Júlio não desistiu. Começou a pesquisar sobre a vida de quem doa o rim e descobriu que é possível, sim, ter uma vida normal. Mas a trajetória até a concretização do ato não foi simples. Ao entrar em contato com o médico da irmã, Júlio deu de cara com alguns obstáculos. "Eu sabia que o nosso tipo sanguíneo era o mesmo e achei que era suficiente, mas quando fui fazer os exames, a demora foi grande. Alguns exames deram errado e precisei repetir. Mas, no fim, deu tudo certo", celebrou.
A doação
Em janeiro de 2024, veio a feliz surpresa. Júlio entrou em contato com o médico da irmã e informou que queria doar o órgão a ela. "Choramos muito juntos. Foram oito meses de espera e ansiedade até o dia da cirurgia", comemorou Priscylla.
A doação não poderia ter acontecido em um dia mais emblemático: 5 de setembro de 2024, Dia do Irmão. O transplante de Priscylla foi o primeiro a ser realizado no Hospital Brasília Águas Claras. "O procedimento de Priscylla foi bem-sucedido. Ela está em ótima recuperação, com exames laboratoriais dentro do esperado para o período. Não apresentou intercorrências", informou a nefrologista Hellen Siqueira.
A alta veio finalmente no dia 11 de setembro. Em breve, Priscylla voltará ao hospital mas, desta vez, para retornar ao exercício da profissão. "Foi muito lindo ver a equipe me dizendo: 'Até breve, nos vemos pelos corredores, mas agora com você voltando aos trabalhos. Queremos te ver bem longe da internação'", contou.
Passada a fase mais delicada, os irmãos agora usam o humor para lidar com a situação. "Demos o nome de Rinsvaldinho ao rim doado pelo meu irmão. Sigo em casa me recuperando, tomando meus imunossupressores e cuidando dessa nova parte de mim. Meu marido e minha família seguem cuidando da gente com todo amor e isso tem nos fortalecido", destacou Priscylla.
Outra opção para transplante de rim é receber de um doador pós-morte. É o caso da psicanalista Gisele Hedler, 42, que teve um rim doado de um paciente morto após aguardar 21 dias na fila geral do Sistema Único de Saúde (SUS). "O transplante foi relativamente rápido porque o meu tipo sanguíneo é mais raro, o tipo AB. Portanto, posso receber de um doador de qualquer tipo sanguíneo, o que aumentou as possibilidades", contou. "Sou muito grata. A doação é uma oportunidade de a pessoa trazer vida, ainda que a morte queira vencer. É uma possibilidade para dar sentido à morte de alguém", completou.