A Polícia Federal considerou que uma das falhas mais significativas da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF) durante os atos antidemocráticos de 8 de janeiro foi a não divulgação interna de um relatório de inteligência elaborado pela própria pasta, que apontava os riscos de invasão de manifestantes aos prédios dos Três Poderes.
As informações constam no relatório final da PF, ao qual o Correio teve acesso. A corporação afirma que a falta de circulação interna do documento de cinco páginas, que foi elaborado por um integrante da equipe da então subsecretária de Inteligência, Marília Ferreira Alencar, comprometeu a comunicação entre os órgãos. Marília foi nomeada nos primeiros dias de 2023, após trabalhar com o então secretário de Segurança, Anderson Torres, no Ministério da Justiça.
“Este relatório, que deveria ter sido amplamente compartilhado com outras forças, foi restrito a poucos destinatários, apesar da sugestão e da elaboração de versões específicas pela analista Claudia Souza Fernandes. A decisão de restringir a difusão, tomada pela coordenação de assuntos institucionais da Subsecretaria de Inteligência de Segurança Pública do Distrito Federal, sob a liderança de Marília Ferreira Alencar, comprometeu a capacidade de resposta e a integração entre os órgãos de segurança”, afirmou a PF.
O delegado responsável pelo caso revelou que a pasta, sob a direção de Marília, recebeu um relatório de segurança da Força Nacional no dia 5 de janeiro de 2023, que mostrava os riscos de possíveis atos naquele fim de semana, além de alertas da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). No entanto, a equipe de Marília elaborou apenas o documento de inteligência, ao qual restringiu conteúdo e alcance, o que chamou a atenção dos investigadores, que destacaram que ela já ocupou cargos com funções semelhantes no Ministério da Justiça.
“Essa limitação comprometeu a coordenação com outras forças de segurança e apresentou falhas na própria circulação interna, uma vez que o secretário Anderson Torres afirmou não ter tomado conhecimento do documento. A falta de proatividade em buscar, integrar e compartilhar essas informações no planejamento de segurança expôs uma atuação claramente deficiente, especialmente levando em consideração o alto gabarito dos envolvidos e a familiaridade de seus membros com os principais agentes de inteligência do país”, escreveu a PF no relatório final.
De acordo com a PF, após ser ouvida no inquérito, a analista Claudia Souza Ferreira afirmou que foi instruída a não compartilhar o documento de inteligência pelo coronel da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF), Jorge Henrique da Silva Pinto, coordenador da subsecretaria. À época, a analista disse não saber ao certo se a decisão era exclusivamente do coronel ou de Marília.
“Contudo, tal ponto é de menor relevância no contexto geral, pois, estando na posição de comando, caberia a Marília garantir a aplicação dos princípios fundamentais da atividade de inteligência (necessidade). Especialmente por sua vasta experiência na área, era esperado que Marília tivesse agido para assegurar a difusão correta do relatório, independentemente das sugestões da analista”, afirmaram os investigadores.
Durante a CPI dos Atos Antidemocráticos da Câmara Legislativa (CLDF), o coronel disse que entregou o documento à cúpula da SSP-DF, mas que teria sido ignorado. No entanto, anteriormente, o secretário havia afirmado à PF que não tinha recebido informações indicando riscos significativos de violência ou depredações e que, se soubesse, não teria viajado aos Estados Unidos — a mesma informação foi dita por Torres na CPI distrital. A versão final da PF, no entanto, era de que o então secretário tinha conhecimento do relatório antes de viajar.
Já Marília disse aos deputados distritais, durante depoimento, que todas as informações recebidas por ela foram repassadas para as áreas operacionais. “Não acho que a Inteligência fracassou. Todas as informações circularam. Tudo que tinha foi recebido e repassado”, disse parlamentares. “Na inteligência, eu posso afirmar que as informações fluíram. Tudo que chegou (na subsecretaria) foi analisado, informado e repassado”, completou, na ocasião.
Investigação
Outro ponto que chamou a atenção da PF foi a impossibilidade de concluir a análise dos dados telemáticos do ex-secretário Anderson Torres, uma vez que sua defesa alegou que ele perdeu o aparelho celular nos Estados Unidos. Além disso, a PF reforçou que Marília apagou as mensagens que tratavam sobre sua atuação em 8 de janeiro.
“Essas mensagens apagadas parecem não se restringir a conteúdos pessoais, pois verificou-se a ausência de conversas esperadas, como diálogos com Anderson Gustavo Torres, seu chefe imediato, e com outras pessoas com as quais mantinha relações profissionais relevantes para a investigação. Isso levanta questionamentos sobre a natureza dessas comunicações suprimidas e seu potencial impacto na análise dos fatos”, descreveu a PF.
Ao final, o delegado responsável pelo caso, Raphael Soares Astini, concluiu que as falhas da SSP-DF no enfrentamento das manifestações são evidentes, “especialmente pela ausência inesperada de seu principal líder, Anderson Torres, em um momento de extrema relevância, aliado à falta de ações coordenadas e à difusão restrita de informações cruciais contidas no Relatório de Inteligência no 06/2023, fatores que contribuíram diretamente para a ineficiência da resposta das forças de segurança”, escreveu o investigador.
“Em suma, a ausência de articulação e de difusão de dados comprometeu a capacidade de antecipar e enfrentar os atos de violência, revelando um despreparo que não pôde conter a escalada dos eventos ocorridos em 8 de janeiro de 2023”, concluiu o delegado.
O relatório foi encaminhado por Moraes ao procurador-geral da República (PGR), Paulo Gonet, que terá 15 dias para avaliar o material. As defesas de Torres e do governador Ibaneis Rocha (MDB), também investigado no inquérito, solicitaram acesso ao documento elaborado pela PF.
Relatório da inteligência
O documento da Polícia Federal que aponta “falhas evidentes” da SSP-DF no dia 8 de janeiro de 2023 menciona um relatório de inteligência que a pasta não adotou. O documento, elaborado pelo setor de inteligência da própria secretaria e obtido pela reportagem do Correio mostra que a pasta tinha conhecimento dos riscos de uma invasão no Congresso Nacional.
O relatório de inteligência registra que manifestantes estavam mobilizados em frente ao acampamento na área do Quartel-General do Exército e que havia convocação pelas redes sociais para novas mobilizações em Brasília naquele fim de semana. O documento descreve que o ato era intitulado como a “Tomada de Poder pelo povo”.
As cinco páginas do relatório, destinadas a subsidiar o então secretário de Segurança Pública, Anderson Torres, indicam que as divulgações sobre o ato nas redes sociais orientavam que os participantes fossem adultos “em boa condição física, sendo vedado a participação de crianças e daqueles que apresentam dificuldade de locomoção”.
“As divulgações apresentam-se de forma alarmante, dada a afirmação de que a ‘tomada de poder’ ocorreria, principalmente com a invasão do Congresso Nacional. Entre os organizadores da manifestação estariam integrantes de grupos autodenominados de patriotas, além dos segmentos do agronegócio e caminhoneiros. Importa destacar que em transmissão realizada ao vivo, em rede social, houve destaque para manifestação a partir do dia 07JAN23, com participação de milhares de pessoas e vindas de caravanas”, detalha um trecho do relatório da área de inteligência.
O documento também menciona que Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs) tinham a intenção de “sitiar Brasília”. “Assinala-se ainda grupo de mensagem, no qual os integrantes seriam conhecidos por CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores) e com postagens sobre ‘sitiar Brasília’ e que denotam a intenção de prática de atos de violência no dia 08JAN23. Por meio de grupos de aplicativo de mensagem, constata-se a intenção de organização de caravanas de outros Estados com destino a Brasília para participação dos referidos atos”, aponta o relatório.
O relatório de inteligência foi emitido no mesmo dia em que Anderson Torres viajou aos Estados Unidos, em 6 de janeiro. Mesmo assim, investigadores da PF indicam que a SSP-DF teve conhecimento do conteúdo do relatório, mas não tomou providências.
Os investigadores responsáveis pelo caso explicaram à reportagem que a omissão da pasta ficou clara em uma reunião realizada no dia 7 de janeiro entre o diretor-geral da PF, Andrei Passos, o então secretário-executivo da SSP-DF, Fernando de Sousa Oliveira, e a subsecretária de operações, coronel Cíntia Queiroz. No encontro, solicitado às pressas pela PF, Passos manifestou a preocupação da corporação, informando que o movimento golpista pretendia “ocupar a Esplanada dos Ministérios e contestar o resultado das urnas eleitorais”. Como solução, o diretor-geral solicitou medidas, como o isolamento da Esplanada.
A resposta, no entanto, teria sido contrária ao pedido, com integrantes da SSP-DF afirmando que se tratava de uma “simples manifestação de cunho pacífico”, sem necessidade de fechamento. Com a negativa, Andrei redigiu uma minuta de ofício destinada ao então ministro da Justiça, Flávio Dino, relatando o cenário crítico e os possíveis desdobramentos que poderiam ocorrer. O documento elaborado por Dino foi despachado no mesmo dia para o governador Ibaneis Rocha (MDB).
Todo evento que ocorre em Brasília, é necessário da emissão de um Protocolo de Ações Integradas (PAI). O daquele fim de semana, elaborado também no dia 6 de janeiro, determinava que veículos e caminhões não poderiam adentrar na Esplanada, assim como manifestantes não poderiam chegar até a Praça dos Três Poderes, mas não indicava o potencial risco, de fato, dos atos antidemocráticos que poderiam ocorrer em 8 de janeiro.
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