A Ala dos Pioneiros, no Campo da Esperança, acolheu nesta sexta-feira (25/10) um dos intelectuais que mais vivenciou a cultura da capital. Vladimir Carvalho, um dos seus mais ilustres habitantes, encerrou o ciclo de quase nove décadas, morto aos 89 anos, na quinta-feira (24/10), em decorrência de complicações por infarto. Com direito a letreiro luminoso que anuncia a exibição do dia, o velório do cineasta, realizado ontem, preencheu o saguão do Cine Brasília (EQS 106/107) de saudade.
Em um casamento que perdurou 58 anos, a viúva de Vladimir, Maria do Socorro, trouxe a síntese da bondade, sempre exaltada por todos que com ele conviveram: "Eu tenho muito a que agradecer a Vladimir, por estes anos todos de casamento. Foram muitas as batalhas, e passamos momentos difíceis, mas eu agradeço, de coração, pela minha vida com ele. Já Vladimir, no trabalho que realizou, deu um presente para esta cidade. Houve todo o esforço dele, porque ele amava Brasília. Tivemos espaços vazios (na relação), mas, ultimamente, nós nos reencontramos, e graças a Deus, isso foi algo importantíssimo, para mim, e tenho certeza de que para ele".
"Ele que me colocou nesse mundo de cineasta e, consequentemente, meus filhos também entraram", disse ao Correio, com a voz embargada, Walter Carvalho. "Viramos uma família de gente de cinema. A melhor coisa que posso falar do meu irmão é que ele me ensinou tudo o que eu sei", acrescentou, ao lado do filho, o diretor de televisão Lucas Carvalho. "Vladimir é o maior documentarista da história do cinema brasileiro, com legado dos filmes, e, para a nossa família, ficou uma pessoa que sempre tinha uma mensagem positiva; nunca ouvi ele reclamar das coisas — trazia uma vibração de simplicidade e alegria", declarou o sobrinho.
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Às de espadas
Presente nas homenagens, o autor de trilhas de cinema Patrick de Jongh definiu o legado da amizade. "Carinhoso, afetuoso e agregador, se Vladimir fosse definido em uma palavra, seria 'exemplo'. Ele esteve na fundação de entidades locais do audiovisual, conhecia os cineastas de todas as gerações, e sabia o que cada um produzia. Vladimir tinha vivacidade e liderança política, nisso conquistou um enorme respeito. Ele era nosso ás de espadas para resolver coisas — na nossa cabeça, ele é eterno". A esposa de Patrick, a cineasta Cibele Amaral, considerou: "Vladimir aceitava encampar mobilizações no Ministério da Cultura, na Secretaria de Cultura do DF, e no que o audiovisual precisasse. Conectado com o tempo, mantinha a mente jovem, e tinha garra para fazer a cultura prosperar".
Para se ter uma medida de Vladimir, é possível notar do apreço que teve com o colega de ofício Glauber Rocha. Escritos, rolos de filme e desenhos de Glauber foram preservados por Vladimir, que propiciou, em parte, o trânsito do acervo do mais efusivo cineasta do Cinema Novo para a Cinemateca Brasileira. "Em 30 de janeiro, Vladimir comemorou 89 anos aqui no Cine Brasília. Já estava em andamento uma grande mostra retrospectiva com a obra dele. Estávamos no esforço de prospectar as cópias, os direitos autorais, e as matrizes para o evento. Celebrando a vida dele — manteremos isso com maior felicidade, honradez e emoção. Vladimir gostaria que acontecesse", adiantou ao Correio a neta de Glauber e da atriz Helena Ignez, Sara Rocha.
Diretora geral do Cine Brasília e do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, Sara esteve no velório. "É muito tocante para mim. Vim com a Dona Lucia (mãe de Glauber) para o festival, ainda como estagiária do Canal Brasil, e levei as fitas Beta do Vladimir Carvalho para passar pela primeira vez na televisão. Depois, na primeira etapa da gestão no Cine Brasília, tivemos a honra de programar O pais de São Saruê por uma semana no Cine Brasília", observou.
Uma aliança entre Glauber e Vladimir se distende no tempo. Profissionais muito amigos, ficaram muito próximos quando Glauber veio criar em Brasília A idade da Terra, em fins dos 1970. "Glauber e Vladimir tinham respeito e intimidade. Levei minha filha ao Cinememória, ao final do ano passado, e ele mostrou para ela, que está com 11 anos, a moviola em que o bisavô (dela) tinha montado um filme, além de cartazes. Glauber e Vladimir tinham trocas intelectuais, artísticas e de linguagem", lembrou Sara. Ela conta que Vladimir era uma figura que o avô considerava muito. E Vladimir ajudou muito Dona Lucia no processo de pesquisa e prospecção do acervo (do Glauber) que estava espalhado em várias partes do Brasil e do mundo — que culminaram no material fílmico e documental do Tempo Glauber (projeto que reestruturou a obra do autor de Deus e o diabo na terra do sol e Terra em transe).
"Acalentamos um grande projeto de restauro dos filmes do Vladimir, a partir do conhecimento de Paloma Rocha (responsável pelo Tempo Glauber), com passinhos, na expectativa de que tivesse mais tempo para acontecer. Vladimir foi uma fonte de pesquisa para entender arqueologia e o método de georrefereciamento da obra do Glauber", pontuou Sara. Ela sonha em dar o mesmo tratamento a Vladimir de grande cineasta do cinema mundial e nacional, a exemplo de Glauber. "Como pioneiro, merece igual deferência e investimento de preservação e disponibilização, pois via o cinema como ferramenta de formação de novas gerações de seres humanos, trazendo conteúdo de construção de identidade e de soberania nacional", definiu.
Solidez
Por mais de 50 anos, amigo de Vladimir, o antigo programador do Cine Brasília e da Cultura Inglesa José Damata lembrou das qualidades de Vladimir. "Organizamos os dois primeiros festivais do Filme Brasiliense da cidade. Vladimir era o esteio, na linha de frente, peitando o que precisasse. Se metia em brigas históricas como a de liberar O país de Sâo Saruê da censura, por mais de oito anos. Nunca se rendeu, e recebia 'a primeira bala', se precisasse", distinguiu. Damata ainda ressaltou que Vladimir foi homem de filmografia brilhante, "impecável, cheia de conteúdos nacionais".
Se esquadrinhou os bastidores da dissolução do espírito inicial da UnB, em Barra 68 — Sem perder a ternura, freado pela truculência, Vladimir não deixou barato, enquanto professor e ativista. Quem conta a ação "subversiva" do mestre é a cineasta Liloye Boubli, ex-aluna e amiga de Vladimir, por mais de 40 anos. "Com o curso de cinema fechado, e a ditadura a pino, Vladimir, num conluio com o projecionista de 16mm, com os alunos trancados a sete chaves, exibia em sala o sumo do cinema russo, com filmes de Dziga Vertov e Eisenstein. A gente, de bico calado, vendo as coisas mais revolucionárias, em plena ditadura", rememorou.
Dos corredores da UnB, ainda brotou a amizade com o "Chiquinho da Livraria", que, no saguão, ressaltou "a pessoa tão importante do Vladimir, na vida e na universidade". "Ele me ajudou muito, e gostava dos livros", ao que emendou, emocionado: "Ele foi importante para a minha vida, meu coração e minha memória". Sem tanta convivência o confrade na Academia Brasiliense de Letras Arnaldo Godoy destacou as qualidades observadas em curto espaço na entidade. "Era uma figura diferente: superior, ele transcendia a todos nós, e falava com elegância, além de escrever com uma clareza e objetividade e senso de justiça que nunca vi igual. Marca uma grande perda. Vladimir era multifacetado: conhecia história, geografia, sociologia e acima de tudo o ser humano — um humanista de primeira", destacou o escritor, ex-consultor Geral da União e ainda versado em crítica literária e história do direito.
Cinema na veia
Fotógrafo de notáveis filmes de Eduardo Coutinho, Jacques Cheuíche, formado em campo na capital, relembrou dos quatro longas documentais feitos com Vladimir: Barra 68, O engenho de Zé Lins, Cícero Dias e Giocondo Dias — Ilustre clandestino, sem contar da inusitada parceria inicial, com trecho de Conterrâneos velhos de guerra. "Fiz um trabalho no lixão da Estrutural, e notei que, de lá, se via a Praça dos Três Poderes. Quando uma vez vi Vladimir, sozinho na mesa do Beirute, me apresentei. Contei do que vi, e ele, prontamente, disse: 'Vamos filmar?'. Filmamos, mas estava tudo branco, com a névoa seca, e nisso resultou uma cena, quando ele veio a me colocar no filme", contou. Com a ciência de que o câmera de documentário 'é o olho do diretor', Cheuíche ressaltou a índole de Vladimir. "No set, ele não dava aula. Era, sim, muito animado. Tinha um objetivo: sabia o que ele precisava para contar a história dele. Nisso, ele ainda absorvia ideias. Informativo, o cinema dele era poético. Revi (quinta) O País de São Saruê e é poesia pura, o tempo todo", pontuou.
Autora de livros relacionados ao Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e ainda da produção de filmes na capital, a pesquisadora de cinema Berê Bahia iniciou a amizade com Vladimir em 1981. "Nós tivemos uma amizade com muito respeito e admiração. Ele era humilde e acolhia todo mundo. Para mim, Vladimir foi meu guru do Cinema Brasileiro, como foi o Glauber Rocha. Nos 25 anos da cidade, me ajudou na elaboração da mostra de cinema de Brasília. Dos filmes, com o Conterrâneos velhos de guerra, ele registrou como ninguém, a trajetória dos candangos por todas as fases. Não se esquivou de entrar no cerne de terem sido 'descartados'. O cinema de Vladimir não se absteve de nada", avaliou.
Quem arremata toda a dedicação de Vladimir ao cinema é William Allves, que viu o mestre presente, desde a formatação do Festival de Cinema de Taguatinga, há 26 anos. "Tivemos uma relação cinematográfica — com o cinema como nosso ponto de ligação. Na feitura do filme sobre o boi do seu Teodoro Freire, observei a proximidade deles. A cultura popular falava alto: eram próximos e dialogavam muito. Vladimir registrou momentos únicos da cidade, sempre com a postura de curioso, ávido e por imagens. Ele teve sagacidade de captar movimentos que simbolizaram a cidade, como no caso do Rock Brasília: era de ouro. Ele transitou por vários lugares, e a notícia, no fim, é que morreu alguém que pensávamos que nunca ia morrer".
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