A tentativa de homicídio contra uma criança de 7 anos em Sobradinho, na segunda semana de agosto, causou revolta e reacendeu um debate na sociedade. A indignação não se deveu apenas à brutalidade das agressões, mas também a um benefício dado ao acusado: André Gabriel Ribeiro da Silva, 37, com diversos crimes violentos em sua ficha policial, é primo do menino e havia deixado a cadeia menos de 24 horas antes de atacar o garoto, graças a haver sido considerado em condições para estar no regime semiaberto.
Para especialistas em segurança pública, o caso reforça a necessidade de critérios mais pormenorizados das medidas que permitem a soltura de condenados. Os sete presídios do Complexo Penitenciário da Papuda e o Centro de Progressão Penitenciária (CPP) comportam um total de 15.930 custodiados. Desses, 5.863 condenados podem deixar a penitenciária durante o dia atualmente. Outros 973 aguardam passar pelo exame criminológico, uma perícia feita no presídio que verifica a conduta do condenado para determinar a aptidão para a progressão e a execução individualizada da pena. Especialistas entrevistados pelo Correio apontam problemas nessa avaliação.
A lei nº 14.843, de 11 de abril de 2024, trouxe mudanças importantes à Lei de Execução Penal (LEP), tornando o exame criminológico obrigatório, novamente, para a progressão de regime. Essa transição havia sido flexibilizada, em 2003, pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Agora, voltou a ter limitações. Isso porque, além do cumprimento de parte da condenação e comprovação de bom comportamento, os detentos precisam passar por uma equipe multidisciplinar composta por psiquiatras, assistentes sociais e membros do sistema penitenciário. Essa avaliação inclui exames clínicos, psicológicos e comportamentais, além do histórico criminal do candidato.
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O Correio conversou com peritos em criminologia, psicologia e psiquiatria forense, que levantaram diversos alertas sobre o exame criminológico. Esses profissionais destacam que fatores como a superlotação carcerária, o despreparo técnico e o desinteresse das equipes responsáveis geram laudos frágeis, preconceituosos e imprecisos. Assim, ficam comprometidas a confiabilidade das avaliações e, consequentemente, a eficácia do sistema de progressão de regime.
O caso de Sobradinho revela que, apesar da ficha criminal extensa, Silva — investigado pela agressão — não passou pela avaliação quando progrediu do fechado para o semiaberto. Esse erro permitiu sua liberação e, consequentemente, facilitou que reincidisse em um crime grave.
O chefe da psiquiatria forense do Instituto de Medicina Legal (IML-DF), na capital federal, Otavio Castello, explica que o exame é questionável, mas que serve como prognóstico, pelo que se tenta gerenciar riscos futuros, indo além das questões meramente médicas. Para ele, o ideal seria oferecer suporte psiquiátrico, psicológico e social aos detentos durante o encarceramento. "Um dos grandes equívocos é a expectativa de que, ao aplicar testes psicológicos ou exames sofisticados, seja possível prever com precisão o comportamento futuro", afirma. Ele comenta que presos com transtornos mentais recebem tratamento adequado, mas que, ao serem liberados, frequentemente abandonam o tratamento, pioram e reincidem em atos violentos.
Riscos
Especialistas também alertam que avaliações precipitadas ou incorretas tanto podem facilitar o acesso de indivíduos criminosos à liberdade quanto negar a progressão dos que estão aptos a voltar ao convívio social. E apontam haver a possibilidade de as entrevistas serem contaminadas com julgamento moral, tendendo a que o solicitante seja rotulado com base na gravidade do crime cometido, em vez de focar na recuperação e ressocialização.
O último estudo sobre reincidência no Brasil foi produzido em 2022 pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e revela que, na capital federal, 43,6% dos presos voltam a cometer crimes em até cinco anos, após saírem da cadeia por decisão judicial, fuga ou progressão de pena.
Além desse problema, superlotação carcerária afeta todo o país. De acordo com dados do órgão, no segundo semestre de 2023, no território nacional, o número de presos em celas atingiu 648.480 pessoas em espaços projetados para 487.208. O cenário no "quadradinho" também é crítico: são 15.930 detentos para 8.686 vagas. "A situação ideal seria, então, que o juiz tivesse a opção de decidir para quais casos o exame seria feito. Isso reduziria a quantidade de exames e talvez, pudessem ser feitos com mais cuidado e somente em casos mais complexos", opina Gustavo Scandelari, especialista em direito penal e criminologia e doutor em direito pela Universidade do Paraná (UFPR).
Elisa Walleska Krüger é doutora em psicologia pela Universidade de Brasília (UnB) e perita forense. Em um estudo que desenvolveu, avaliou 90 presos do DF que cumpriam medida de segurança. Para ela, a medida poderia ser eficaz, mas há despreparo técnico, má vontade e desinteresse dos profissionais. "Os presos são sempre marginalizados no Brasil e alvos de todo tipo de preconceito, inclusive por parte de profissionais de saúde mental", adverte.
O criminologista Scandelari considera que o problema geral está na administração da Justiça. "Não há estrutura suficiente ou recursos humanos e materiais para a realização de exames de forma idônea em toda a população carcerária, que, por isso, acabaria sofrendo as consequências pela demora excessiva ou pela negativa inadequada de progressão. Ao juiz cabe avaliar se o preso tem "mérito" para progredir, de forma mais objetiva: se o magistrado considerar, pelo perfil, antecedentes, histórico ou elementos de prova idôneos que o preso não tem mérito, pode negar a progressão", avalia.