Eu era uma menininha pequena de cabelos curtos que pouco queria saber das outras crianças da minha idade. Nascida com a alma de uma mulher rabugenta de cinquenta anos, sempre preferi a companhia dos livros. Não tivera a sorte de ter um pai dono de livraria, mas minha mãe era professora de letras e sempre dara um jeito de me manter com um amigo recheado de histórias em mãos.
Ela me surpreendia com as escolhas constantes do que eu iria ler na semana. Também sempre me incentivara a escrever para seguir com o legado da parte artística da família, no meio de tantos profissionais dos números. Foi quando notou certo tom de melancolia e existencialismo pouco comum em pessoas da minha idade nas minhas produções que resolveu arriscar e me entregar um conto de Clarice Lispector pela primeira vez.
Não foi nenhuma das publicações infantis de Clarice que mamãe pensou em me mostrar. Minha mãe certamente saberia que me sentiria subestimada ao ser rebaixada a minha própria idade de fato. Estava no meu quarto olhando a janela e fazendo aquilo que as crianças peculiares fazem de se entreter com os próprios pensamentos - mas nunca se lembram como era divertido depois de crescidas - quando ela chegou segurando algumas folhas impressas.
O cheirinho de papel recém tocado pela tinta já me antecipava: mamãe tinha impresso algo para ler. Ela me olhou de cima a baixo, receosa com o primeiro contato que teria com Clarice e me entregou as folhas sem nenhuma apresentação prévia do que se tratava. Abri as páginas leves: Felicidade clandestina. Enquanto eu lia os primeiros parágrafos sobre uma menina gorda e egoísta filha de um dono de livraria, mamãe me observava.
Olhei para cima como se ela estivesse me vendo nua de alma e ela saiu. Mergulhei na história da pequena que queria tanto ler ‘As reinações de Narizinho’ mas a colega abençoada pelo poder nunca a emprestava. Entendi o título quando a criança finalmente colocou as mãos no livro mas nunca tinha coragem de lê-lo: a felicidade de ter o que tanto almejara não era familiar para ela.
Me sentira assim durante toda a minha curta vida. Uma espectadora da minha própria felicidade, como se nunca tivesse a capacidade de consumir a alegria de fato. Assim como Clarice, a felicidade era um elemento estranho para mim. Não tinha repertório para lidar com tal dádiva. A descoberta de alguém que se sentiu igual a mim me devastou. Li. Reli. Quantas vezes nem sei.
O último parágrafo do pequeno conto me despertou: “Não era uma menina com um livro, era uma mulher com seu amante.” Então eu existo e sempre existi nos olhos de tantas outras crianças que não se encaixavam ao que lhes era imposto. Não tenho certeza sobre reencarnação, mas senti uma forte conexão com a escritora que jurei já ter estado dentro daquela cabeça.
Fui até minha mãe e disse que queria ler mais. Por mais que clandestina, minha felicidade não era suficiente. Orgulhosa mas não surpresa, mamãe me conduziu pelos escritos de Clarice. Desde então sinto que tenho uma alma gêmea no mundo que nunca poderei encontrar além dos livros.