EQUIDADE

Mulheres negras vão à luta por mais espaço no mercado de trabalho

Apesar do desemprego, que atinge 100 mil mulheres negras no DF, e da dificuldade para ocupar posições de comando, muitas conseguem quebrar barreiras. O Correio traz histórias inspiradoras e ouve especialistas sobre como enfrentar o problema

 Vera Lúcia Santana Araújo, ministra substituta do TSE -  (crédito:  Ed Alves/CB/DA.Press)
Vera Lúcia Santana Araújo, ministra substituta do TSE - (crédito: Ed Alves/CB/DA.Press)

No Distrito Federal, há 495 mil mulheres negras — grupo composto por aquelas que se identificam como pretas e pardas — em idade economicamente ativa. Dessas, quase 100 mil estão desempregadas. Na estrutura ocupacional do DF, 80,5% das mulheres negras trabalham no setor de serviços e em atividades associadas ao comércio e reparação. Os dados são da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) desenvolvida pelo Instituto de Pesquisa e Estatística (IPEDF) em parceria com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos (Dieese).

O Correio conversou com mulheres negras que conquistaram posição de gestão e comando, superando barreiras e preconceitos. Especialistas ouvidos apontam caminhos para que a sociedade supere problemas estruturais e possa contar com mais mulheres negras ocupando os diferentes espaços de poder.

Renata Melo, coordenadora-geral da Ação de Mulheres pela Equidade (AME) e pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade de Brasília (UnB), observa que, historicamente, mulheres negras são colocadas em posição de cuidado, e isso acaba limitando as possibilidades dentro da sociedade e do mercado de trabalho. "É preciso desconstruir um imaginário que as coloca em posição de subalternidade por meio de um letramento de raça e de gênero. A educação tem um papel fundamental, pois precisamos desconstruir isso desde a tenra infância", avalia.

A especialista observa que mulheres negras, em diversas ocasiões, acabam seguindo o caminho do empreendedorismo por falta de espaço e de oportunidade no mercado de trabalho. "O problema é que, muitas vezes, elas vão ser empreendedoras por falta de opção, de maneira informal, sem orientação e sem serem valorizadas", ressalta. "Por exemplo, se uma mulher de tez retinta abre uma clínica de estética ao lado da clínica de uma mulher de pele branca, infelizmente, a empresa da mulher branca será mais prestigiada pelo público. Em termos profissionais, mesmo as mulheres que têm acesso a posições de destaque são exceção ou são colocadas em uma prateleira de menos valia", analisa.

Mercado de trabalho

Pesquisa desenvolvida pela conselheira da Associação de Marketing Promocional (Ampro) Dilma Campos, publicada pela Fundação Getulio Vargas (FGV), mostra que mulheres negras estão em apenas 0,4% dos cargos de liderança nas 500 maiores empresas do Brasil.

Nayara Gabriela, 35 anos, ocupa um cargo de chefia em uma empresa de turismo de Brasília e relata uma realidade onde ela é a primeira mulher em três gerações de sua família que conseguiu fazer faculdade e conquistar um espaço de destaque no campo profissional. "Hoje, sou motivo de orgulho na minha família, mas o processo para chegar até aqui foi árduo. Precisei me esforçar o dobro para provar o meu potencial, provar que eu merecia estar ali", relebra Nayra, que cursou a faculdade com o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e, antes foi atendente e operadora de caixa.

Ela conta que sofreu "racismo explícito", mas persistiu em suas metas. "A maioria das pessoas com quem convivo no trabalho é branca. Eu me sinto lisonjeada por ser uma mulher negra em uma posição de destaque no mercado de trabalho. Sou muito grata por ter tido acesso ao conhecimento e à oportunidade de mostrar o meu potencial", acrescenta.

 13/09/2024. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil.  Brasilia - DF. Nayara Gabriela funcionária da Bancorbrás que ocupa cargo de liderança na empresa.
Nayara Gabriela ocupa um cargo de chefia em uma empresa de turismo (foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

Representatividade

Especialista em raça e gênero e doutora em comunicação, Kelly Quirino salienta a importância de o Estado garantir políticas públicas, estudo e segurança às mulheres e meninas negras para que elas possam ter um trabalho digno. "A partir do acesso às garantias básicas, poderemos alcançar os nossos objetivos. Eu mesma sempre precisei conciliar trabalho e estudos. A necessidade de trabalhar foi muito urgente para mim, desde cedo. Fui babá aos 14 anos, minha mãe era doméstica. Eu precisei trabalhar para pagar meus estudos em um cursinho prévio para entrar em uma escola técnica", comenta. "Ser mulher, negra e pobre foram fatores que me colocaram em um trabalho muito direcionado a mulheres negras, que é ser babá e fazer trabalhos domésticos", completa.

Kelly destaca a importância de mulheres negras terem acesso à terapia. "O mundo é racista. Precisamos de apoio psicológico para que o medo e a insegurança não nos impeçam de alçar voos. É importante, sempre, que a gente se ajude entre si, e que tenhamos mulheres negras como mentoras para nos aconselhar", diz. "Representatividade é sobre sonhar. O racismo, a pobreza e o sexismo tiram das pessoas vulneráveis o direito de sonhar. Ver mulheres negras em cargos de destaque é importante para que as meninas vejam que podem ser ministras, 'presidentas', cientistas, economistas, o que elas quiserem", defende.

Protagonismo

Única parlamentar negra na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF), a deputada distrital Jane Klebia conta ao Correio que recebe muitos relatos de meninas e mulheres que se inspiram nela. A deputada atribui sua trajetória de sucesso à educação. "Minha mãe sempre me ensinou a importância da educação para que pudéssemos conquistar a nossa fonte de renda e os nossos sonhos. Tive baixa autoestima, achava que não ia chegar a lugar nenhum por ser aluna de escola pública. Os caminhos que escolhi seguir me levaram a ser espelho para muitas mulheres", afirma.

9-13-4--20 Crédito: Kayo Magalhães/CB/D.A Press. Cidades. Mulheres negras em cargos de liderança. Na foto, Jane Klebia, deputada distrital e presidente Comissão das Mulheres.
Deputada distrital Jane Klebia, única parlamentar negra na CLDF (foto: Kayo Magalhães/CB/D.A Press)

Jane foi técnica de enfermagem, professora de geografia, agente de polícia e delegada. Todos os cargos que assumiu foi por meio de concursos públicos e processos seletivos. "Estudava pelo menos oito horas por dia para cada concurso que ia fazer", orgulha-se. Desde 2014, pela legislação, 20% das vagas de certames públicos são destinadas a pessoas negras. No entanto, a deputada prestou os concursos antes disso e concorreu sem cotas. 

"No início, tive dificuldade de me enxergar em alguns espaços de poder e destaque na sociedade. Eu nunca me vi como jornalista, por exemplo, simplesmente porque quase não via jornalistas negras na televisão. Hoje, um dos meus filhos é jornalista, e eu tenho muito orgulho dele", relembra.

Na última semana, a parlamentar assumiu o comando da recém-criada Comissão dos Direitos das Mulheres da CLDF. "Creio que essa posição coroa minha trajetória até aqui. A representatividade que sempre busquei. Hoje, muitas pessoas se enxergam em mim. É um grande orgulho e uma grande responsabilidade também", finaliza.

Ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Vera Lúcia Santana Araújo é outro exemplo de mulher negra em um espaço de poder no DF. A magistrada relatou ao Correio que enfrentou muitos obstáculos na carreira jurídica em virtude da cor de sua pele. "Muitas vezes, precisei provar que era advogada, sendo interpelada a apresentar a carteira da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), enquanto mulheres e homens brancos tinham livre acesso aos mesmos espaços sem precisar comprovar que eram profissionais do Direito", recorda.

Para Vera, as mulheres negras sempre enfrentam mais desafios. "É fundamental ter a consciência de que, em nossos caminhos, há mais pedras, uma vez que o racismo e o machismo se encontram elevando muralhas contra nós. Mas não nos intimidamos, não recuamos, e, no fazer coletivo, democrático, somos mais fortes", declara.

A ministra acredita que é essencial haver mulheres negras em todos os níveis e espaços de poder, sem segregação em áreas. "Devemos estar no Ministério da Justiça, da Fazenda, nas mesas diretoras das Casas Legislativas, no Poder Judiciário, ou seja, onde houver gestão de poder, nós devemos estar no exercício pleno das nossas competências", defende.

Palavra de especialista

Por Larissa Guedes, mestra em Estado, Governo e Políticas Públicas e especialista em Filosofia e Direitos Humanos

Para que as mulheres negras saiam da subalternidade e passem a assumir cargos de liderança, são necessárias políticas públicas afirmativas tanto no setor público quanto no setor privado. Quando falamos de educação de base até o ensino superior, são necessárias políticas de manutenção das mulheres negras nesses espaços onde, na maioria das vezes, conseguimos ingressar, mas não conseguimos nos manter. Bolsas, mentorias e programas específicos de avanço, além de políticas de diversidade que garantam a presença de mulheres negras, abririam espaço para criar um ambiente acolhedor e garantir a diversidade. É preciso criar rede de apoio e fortalecimento entre nós, que sabemos quais são as nossas principais demandas.

Em relação ao mercado formal, cotas existem, cargos de liderança direcionados também existem, mas precisamos de incentivos fiscais para que as empresas promovam a diversidade e efetivem isso. As instituições precisam entender que diversidade não é favor. Nosso problema é que a gente dificilmente tem acesso a qualificação. A ampliação do acesso à educação e à capacitação profissional é imprescindível. programas para desenvolvimento específicos para mulheres negras é o que vai fazer garantir o nosso crescimento dentro desses espaços.

Foi criado um estereótipo de que a gente não tem capacidade, que a gente só serve para trabalho braçal, e aí não é desmerecendo nenhum trabalho braçal, mas é como se a gente não tivesse capacidade intelectual de desenvolver alguma coisa. E isso é um estereótipo, é preconceito. A interseção de raça e gênero coloca a gente na base da pirâmide social como alvo de discriminação e, na maioria das vezes, não somos contratadas, muito menos promovidas. Para que haja uma mudança nesse cenário, nosso país precisa de investimento na conscientização social e na luta por direitos que realmente se modifiquem em ações concretas dentro das organizações, instituições e efetivando políticas públicas.

 

Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Ícone do whatsapp
Ícone do telegram

Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br

postado em 24/09/2024 06:00
x