Transporte

Motoristas e passageiras de transporte por aplicativo reclamam de assédio

Mulheres e homens que dirigem carros de aplicativo relatam assédio durante corridas. Por outro lado, passageiras também se dizem incomodadas com a importunação sexual. Especialistas recomendam registrar boletim de ocorrência

Especialistas ouvidos pelo Correio ressaltam a importância de as plataformas adotarem medidas mais eficazes para garantir a segurança de usuários e motoristas -  (crédito: Maurenilson Freire)
Especialistas ouvidos pelo Correio ressaltam a importância de as plataformas adotarem medidas mais eficazes para garantir a segurança de usuários e motoristas - (crédito: Maurenilson Freire)

Uma pesquisa realizada pelos institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, em parceria com o aplicativo Uber, revelou que 74% das 350 mulheres entrevistadas no Distrito Federal já sofreram algum tipo de violência — como assédio sexual, agressões físicas, olhares insistentes e discriminação — em serviços de transporte por aplicativo na capital federal. O estudo também aponta que 50% das usuárias gostariam de poder escolher motoristas mulheres e que 45% utilizam esse meio de transporte para se locomover no DF.

Dados da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF) mostram que, no ano passado, dos 889 casos de importunação sexual registrados no DF, 23% ocorreram dentro de carros por aplicativo. Especialistas ouvidos pelo Correio ressaltam a importância de as plataformas adotarem medidas mais eficazes para garantir a segurança de usuários e motoristas, como a oferta de opções que proporcionem mais conforto e proteção às passageiras, além do fortalecimento dos mecanismos de denúncia e prevenção.

Mas mulheres e homens que dirigem para essas plataformas também reclamam do assédio. Gisele*, de 42 anos, motorista de aplicativo há três anos, contou que já enfrentou situações desconfortáveis com passageiros, uma delas envolvendo um cliente que pediu seu número de telefone para um encontro, após elogiar sua aparência. "Não eram elogios sobre o meu trabalho, mas sobre o meu braço, cabelo e sorriso", lembra.

"Foi bastante constrangedor, mas esclareci que sou casada e estava apenas trabalhando. Ele não gostou e eu disse que, se estivesse incomodado, poderia sair do carro. No restante da corrida, ele permaneceu calado, mas claro que a gente sente medo. No fim, preferi não reportar, pois só queria trabalhar", conta.

Fábio*, 27, motorista de aplicativo, relatou ter sido vítima de assédio por parte de uma passageira durante uma corrida, descrevendo o ocorrido como uma das situações mais desconfortáveis que já enfrentou em seu trabalho. Ele contou que foi solicitado por um casal que estava se deslocando de uma festa para outra. Ao chegar no destino, o namorado da mulher entrou no local para verificar o horário de término do evento, enquanto ela permaneceu no carro. Nesse momento, a passageira tentou iniciar uma conversa, oferecendo uma bebida ao motorista.

"Ela insistiu para que eu aceitasse uma bebida, mas eu recusei, dizendo que não bebia", relatou o motorista. "Foi aí que ela me pediu para olhar para ela, e, quando eu olhei, ela me beijou do nada. Fiquei sem reação e a empurrei, dizendo: 'Moça, tu é doida? Teu namorado está ali, isso pode dar problema'".

Mesmo com o alerta do motorista, a passageira minimizou a situação. "Ela disse que não se importava com o namorado, mas eu estava muito desconfortável. Falei para ela não fazer aquilo, que não era certo", acrescentou.

Impactos

A psicanalista e líder do movimento Feminino e Mentalidade do Mundo, Ana Lisboa, destaca que vítimas de assédio em carros de aplicativos, sejam passageiros sejam motoristas, podem enfrentar uma ampla gama de impactos psicológicos. Entre os mais comuns estão ansiedade, medo persistente, sensação de vulnerabilidade e, em alguns casos, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). "Essas situações podem resultar em dificuldade de usar o serviço novamente ou até mesmo de sair de casa, especialmente quando a pessoa se sente vulnerável em atividades cotidianas", avalia.

Motoristas que vivenciam essas situações, tanto homens quanto mulheres, também podem sofrer no ambiente de trabalho, revivendo episódios anteriores por meio de flashbacks, pesadelos ou uma constante sensação de perigo, o que afeta sua qualidade de vida. "Esse medo pode gerar receio de aceitar novas corridas ou até mesmo levar ao abandono da profissão", alerta Ana Lisboa.

"Outro impacto frequente é a depressão, que surge quando a vítima se sente impotente, culpada ou envergonhada pelo ocorrido, especialmente se não recebeu apoio. A desconfiança de outras pessoas também é um efeito comum, levando ao isolamento social", conclui a especialista.

Passageiras

Mariana*, de 25 anos, relatou um episódio de assédio que enfrentou durante uma corrida no Guará, em maio deste ano. "O motorista fez perguntas invasivas e me olhava de forma intimidante. No início, tentei ignorar, mas a situação piorou quando ele sugeriu que nos encontrássemos", relembra.

Ela explicou que mudou a rota e desembarcou perto da Praça do Relógio. Sentindo-se aflita, Mariana contou que simulou uma ligação para o companheiro, na tentativa de evitar novas investidas. "A gente nunca está preparada para esse tipo de situação. Acredito que nada de grave aconteceria, mas preferi não arriscar", desabafa.

Situação semelhante foi vivida por Sofia*, de 31 anos. À reportagem, ela contou que voltava do trabalho à noite, em Águas Claras, quando o motorista começou a elogiar sua aparência, o que a deixou desconfortável. "Fiquei sem reação, pois ele comentava o quanto eu 'estava bonita'. Foi extremamente desagradável, já que sempre ouvimos histórias de algo ruim acontecendo nessas situações. Passei o resto da viagem em silêncio, torcendo para chegar logo em casa", relata.

Para a coordenadora do curso de Psicologia da Universidade Católica de Brasília, Ana Cristina Bezerra, situações de assédio, por serem inesperadas, dificultam a reação imediata das vítimas, comprometendo sua defesa pessoal. Nos casos relatados, as passageiras não denunciaram os motoristas por medo e insegurança.

"É comum que as pessoas fiquem paralisadas diante da situação, o que gera um sentimento de culpa, como se a ausência de reação indicasse alguma concordância com a violência sofrida. Isso é tão forte que muitas vítimas têm dificuldade de denunciar, assumindo, ainda que equivocadamente, parte da responsabilidade pelo ocorrido", explica a especialista.

Ana Cristina acrescenta que, frequentemente, vítimas de assédio se culpam, questionam suas atitudes e acabam abaladas em sua autoestima e autoconfiança. "A vergonha e o silenciamento são respostas comuns, pois ao se sentirem 'corresponsáveis' pelo comportamento inadequado, têm dificuldade de falar sobre o ocorrido e de lidar com as emoções desencadeadas, tornando o sofrimento solitário e desvalorizado", complementa a psicóloga.

Êdela Aparecida Nicoletti, psicóloga especialista em Terapia Comportamental Dialética (DBT), pontua que os impactos psicológicos dessas investidas são profundos, tanto para passageiros quanto para motoristas. Ela reforça a importância de buscar apoio emocional e terapêutico em situações traumáticas. "Muitas vezes, o espaço de segurança pessoal é invadido, gerando uma sensação contínua de insegurança em ambientes como carros ou outros espaços fechados. Além disso, sentimentos de raiva, vergonha e isolamento são comuns, especialmente quando a vítima não recebe o suporte necessário", avalia.

A especialista acrescenta que a invasão em um ambiente cotidiano, como um carro de aplicativo, pode gerar ansiedade persistente e dificultar a confiança em outras pessoas, afetando tanto a vida social quanto profissional da vítima. "Os sintomas do TEPT podem ser devastadores, impactando relacionamentos, desempenho no trabalho e qualidade de vida em geral. Muitas vítimas relatam dificuldades de concentração e uma sensação constante de cansaço emocional. Reconhecer esses sintomas e buscar ajuda rapidamente é essencial para evitar que o trauma se torne crônico", conclui a psicóloga.

Regulamentação

Apesar do crescimento exponencial do uso de aplicativos de transporte no Brasil, ainda não há regulamentação específica para casos de assédio sexual durante as corridas. Para o especialista em segurança pública e professor do Centro Universitário do Distrito Federal (UDF) Júlio Hott, a legislação atual não contempla adequadamente as relações entre motoristas e passageiros em casos de importunação sexual, deixando uma lacuna tanto no aspecto criminal quanto na responsabilidade das empresas.

Hott destaca que, atualmente, o que tramita no Congresso Nacional é um projeto de lei que busca regulamentar a relação trabalhista entre motoristas autônomos e as plataformas de transporte, sem abordar diretamente a proteção dos passageiros contra assédio. "Sabemos que mais de um milhão de motoristas exploram autonomamente esse serviço, e, apesar de haver milhões de usuários, ainda não há legislação específica para essa questão", explica o especialista.

"O que ocorre nesses casos é, geralmente, uma situação de contato momentâneo, na qual o motorista pode se aproveitar da falta de ética para se insinuar sexualmente", comenta. Nesses casos, em vez de assédio sexual, o crime configurado seria o de importunação sexual, que não exige violência ou ameaça, mas sim uma conduta que cause constrangimento sexual.

O especialista em segurança pública e direito penal Ilmar Muniz reforça que tanto passageiros quanto motoristas vítimas de assédio podem buscar uma delegacia da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) para registrar um boletim de ocorrência. Segundo ele, além do processo criminal, as vítimas podem acionar a empresa responsável pelo serviço para obter todos os dados necessários e ingressar com uma ação de reparação por danos morais contra o assediador.

"Essas empresas têm a responsabilidade de proteger seus motoristas e passageiros. Em caso de assédio contra o condutor, a empresa deve fornecer todas as informações do passageiro para que sejam encaminhadas à polícia e, posteriormente, utilizadas em uma possível ação civil de indenização. É o mesmo considerando o outro lado", explica Muniz.

Empresas

Procurada, a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que representa Uber e 99, detalhou que as empresas têm a segurança de usuários e motoristas como prioridade em suas operações. "Nesse sentido, as plataformas possuem guias de conduta para os motoristas parceiros e usuários que proíbem qualquer tipo de assédio ou violência. Além disso, as empresas realizam campanhas regulares sobre comportamentos que não são tolerados", pontuaram.

"As plataformas ligadas à Amobitec possuem canais de comunicação e ferramentas tecnológicas para que motoristas e usuários possam reportar denúncias de assédio ou qualquer outro tipo de conduta irregular e contam com equipes especializadas para dar suporte e colaborar com autoridades em casos de investigação. Essas equipes estão em diálogo constante com o Poder Público, de forma transparente e colaborativa, colocando-se à disposição para contribuir com iniciativas que busquem avanços na segurança para todas e todos que usam os aplicativos", pontuou a associação.

Já a inDrive informou que possui uma equipe de suporte 24h por dia e 7 dias da semana disponível para motoristas e passageiros em caso de situações de violência dentro do trajeto. "A inDrive rejeita e se opõe firmemente a todos os atos criminosos que vão contra nossos Termos de Uso, valores e propósito corporativo. Em quaisquer destes casos, temos uma equipe de suporte 24h por dia, 7 dias de semana, para ouvir e apoiar a todos os que necessitam de auxílio. Além disso, oferecemos soluções de segurança em nossa plataforma para garantir uma comunicação rápida e direta com nossos times. Na inDrive, levamos a segurança de nossa comunidade com a máxima seriedade e, por isso, continuamos inovando para oferecer uma alternativa de qualidade, confiável e transparente", informou o aplicativo.

Meios de transporte utilizado por elas

Ônibus - 53%

A pé/caminhando - 41%

Carro particular - 43%

Carro de aplicativo - 45%

Motocicleta particular - 8%

Bicicleta particular - 8%

Metrô - 9%

Táxi - 4%

Trem - 3%

Mulheres entrevistadas: 350

Fonte: institutos Patrícia Galvão e Locomotiva

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postado em 26/09/2024 06:00 / atualizado em 26/09/2024 16:41
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