Considerada por especialistas como a porta de entrada para o ciclo da agressão ocorrida no ambiente doméstico, a violência psicológica tem crescido nos últimos dois anos no Distrito Federal. De acordo com o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em 18 de julho, os registros desse crime cresceram 39,3% na capital do país entre 2022 e 2023. Advogadas especializadas dão dicas de como identificar e denunciar esse tipo de violência. O Correio ouviu histórias reais de mulheres vítimas do crime silencioso que pode prejudicar a saúde mental ou até mesmo desencadear outros tipos de violência.
Na maior parte das ocorrências, os diferentes tipos de incidência da violência contra a mulher acontecem de modo conjunto, ou seja, em um registro pode incidir violência psicológica, física e patrimonial, por exemplo. Levantamento da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF) que elenca os tipos de incidência das violências relacionadas à Lei Maria da Penha mostra a psicológica incidindo em 71,1% das ocorrências referentes à legislação registradas entre janeiro e junho de 2024.
Catarina (nome fictício) começou a apresentar sintomas de depressão e ansiedade após cinco anos de casada. Largou o emprego e a faculdade aos 29 anos para se casar, por solicitação do então noivo. No entanto, após o nascimento dos filhos, ela começou a se sentir triste e desmotivada, com a sensação de que era uma mãe e uma esposa ruim.
"Meu marido fazia comentários negativos constantemente sobre a forma como eu tratava nossos filhos, arrumava a casa e fazia a comida. Reclamava, entre outras coisas, que sustentava a casa sozinho e ainda tinha que esperar pela comida, sendo que eu cuidava sozinha das crianças e da casa", relata. "Ele passou a restringir as minhas visitas à casa da minha mãe e não aceitava que eu saísse com minhas amigas", acrescenta. Apesar do medo de perder os filhos devido às constantes ameaças, Catarina contou com o apoio da família e denunciou o marido e se separou. Ela também procurou ajuda psicológica e psiquiátrica.
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Apoio jurídico
Advogada especialista em direito da família, Giulia Mayrink Ghazi comentou que 90% dos casos de violência doméstica que atende envolve chantagem, que é uma forma de violência psicológica. "Na maioria dos casos, envolve filhos. Os homens tendem a utilizar isso para mexer com o psicológico da mulher. Já atendi casos onde o homem diz que, se a mulher pedir medida protetiva ou denunciar, ele para de pagar qualquer coisa para os filhos. Na maioria dos casos, o papel de mãe acaba sobressaindo e a mulher, visando o melhor para os filhos, acaba ficando nessa situação", descreve. "É importante destacar que, juridicamente, um divórcio ou denúncia jamais será causa para o homem parar de pagar a pensão alimentícia", complementa.
Diretora da Rede Internacional de Proteção à Vítima Laço Branco e advogada especialista em direitos humanos e perspectiva de gênero, Maria Izabel Bruginski explica que, por ser um crime recente, ainda há desafios para a comprovação da violência psicológica. "É importante entender o conceito. Consiste no ato de controlar ações, comportamento, crenças e decisões da vítima seja por ameaça, constrangimento, humilhação ou manipulação. Perseguição, insultos e chantagens também consistem em formas de violência psicológica, além de violação de intimidade e ridicularização da mulher", elenca. "Geralmente, é a via de entrada para outros tipos de violência doméstica", completa.
Giovana (nome fictício) se divorciou e está processando o ex-marido após uma série de violências psicológicas culminando com o homem impedindo-a de congelar os óvulos. "Eu estava estudando para concurso e dependia dele financeiramente. Quis congelar meus óvulos porque não queria ter filho naquele momento, mas no dia do procedimento, ele bloqueou o meu acesso ao nosso dinheiro e disse que, se eu não tivesse filho com ele, não teria com mais ninguém", detalhou. "Eu não queria ter filho com outra pessoa, só não queria ter filho naquele momento. Com a pressão, fiquei doente, tive depressão e crises de pânico", contou.
Ela não pôde fazer um boletim de ocorrência na época, porque o divórcio se deu em 2020 e, nessa época, a violência psicológica ainda não era considerada um delito. O crime foi tipificado no Código Penal pelo artigo 147-B, introduzido pela Lei nº 14.188, de 28 de julho de 2021. A pena varia entre seis meses e dois anos de reclusão e multa.
As sequelas desse tipo de violência para a saúde mental da mulher são graves e podem perdurar por anos. "Além da depressão, pode gerar ansiedade, crises de pânico ou até mesmo Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT)", pontua Maria Izabel.
Saúde mental
Médica psiquiatra e diretora da Associação Psiquiátrica de Brasília (APBr), Josianne Martins salientou a importância de procurar ajuda profissional em casos de violência psicológica. "É preciso compreender o que está acontecendo para resguardar a própria segurança e bem-estar. A rede de apoio (amigos, familiares e outras pessoas próximas) é fundamental para ajudar na busca de suporte profissional com psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais e advogados", afirmou.
Josianne destacou que a violência psicológica pode demorar para ser identificada tanto por pessoas próximas quanto pela própria vítima. "O tempo que se passa sob esse tipo de violência é extremamente tóxico para a pessoa, podendo ocasionar adoecimento psiquiátrico e emocional grave. Quando se está diante de uma situação de violência psicológica, além de ajudar a buscar o suporte profissional e jurídico, é necessário ter empatia, validar os sentimentos da vítima, estar disponível para ouvir e respeitar o seu tempo de decisão", observou.
Ameaça e stalking
Segundo o 18º Anuário da Segurança Pública, o crime de violência está interligado com outros dois: a ameaça e o stalking. O levantamento também mostra um aumento nas ocorrências destes crimes no Distrito Federal entre 2022 e 2023. "Se, por um lado, o aumento dos crimes é ruim, de outro lado os dados também podem significar um aumento da disposição das mulheres em buscar ajuda nesses casos, o que tem como consequência, em alguma medida, o reconhecimento da violência presente nessas condutas", analisou a pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Isabella Matosinhos.
Outro tipo de violência silenciosa é a patrimonial, que está prevista no artigo 7º da Lei Maria da Penha e consiste na conduta que visa prejudicar a mulher financeiramente ou impedir que ela tenha acesso a bens e valores necessários à própria vida. "Este tipo de violência vai desde a pessoa quebrar coisas dentro de casa, destruindo bens de valor a qualquer dano ao patrimônio, como impedir a mulher de ter acesso a dinheiro, cartão de crédito, etc", explica a advogada Maria Izabel Bruginski. "Homens que exigem que as esposas repassem o salário completo para eles também estão cometendo violência patrimonial", acrescentou.
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AUMENTO DA VIOLÊNCIA NO DF
2022 2023 CRESCIMENTO PERCENTUAL
Violência psicológica 936 1.304 39,3%
Ameaça 1.236 1.399 13,2%
Stalking 1.925 2.283 18,6%
*Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024
Onde pedir ajuda?
Ligue 190 — Polícia Militar (PMDF)
Ligue 197 — Polícia Civil (PCDF)
E-mail: denuncia197@pcdf.df.gov.br
WhatsApp: (61) 98626-1197
Site: pcdf.df.gov.br/servicos/ 197/violencia-contra-mulher
Ligue 180: canal da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres. Serviço registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgãos competentes, além de reclamações, sugestões e elogios sobre o funcionamento dos serviços de atendimento. A denúncia pode ser feita de forma anônima, 24h por dia, todos os dias. Ligação gratuita
Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher:
(Deam) — 24 horas por dia
Deam 1: EQS 204/205, Asa Sul.
Telefones: 3207-6172 / 3207-6195 / 98362-5673
E-mail: deam_sa@pcdf.df.gov.br
Deam 2: St. M QNM 2, Ceilândia
Telefoes: 3207-7391 /3207-7408 / 3207-7438
Como identificar
» Quando há medo da pessoa
com quem se relaciona
» Ciúme excessivo
» Insultos a tudo que
a mulher faz
» Críticas constantes ao corpo e ao que veste
» Expor ao ridículo na
frente de outras pessoas
» Proibir de falar com
familiares e amigos
» Ameaças envolvendo filhos
» Entre outros
comportamentos
*Fonte: Maria Izabel Burginski, advogada especializada
em direitos humanos e perspectiva de gênero
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