"Nesses tempos, talvez amar seja ficar longe, mas ficar longe não significa não saber, não falar, não se importar. Pode-se ficar perto de longe, sabia?". O trecho, retirado do conto O amor nos tempos de corona, do Nankupé Tupinambá Fulkaxó, faz referência à obra de Gabriel García Márquez — O amor nos tempos do cólera — e retrata a dor da separação durante a pandemia de covid-19. O texto contempla um dos 32 contos publicados a partir do Concurso Voa: prêmio literário para a maturidade, desenvolvido na Universidade de Brasília (UnB), por meio do programa de extensão Universidade do Envelhecer (Uniser).
A seleção reúne textos no gênero narrativo conto, lançados posteriormente em livro virtual. O objetivo é incentivar a prática literária e o envelhecimento ativo de todos os tipos de pessoa idosa no Brasil, estimulando o potencial social e intelectual desses sujeitos, assim como o reconhecimento de suas experiências e reflexões. Coordenador do projeto e professor da UnB, Renato Rezende destaca que o concurso surgiu da necessidade de visibilizar a diversidade dos envelhecimentos brasileiros.
"Nós somos um país em processo de envelhecimento e não estamos sabendo lidar com isso enquanto processo social. Assim, o projeto tem como objetivo alertar as pessoas e abrir o campo de percepção para o envelhecimento saudável por meio da literatura. Afinal, não costumamos pensar a pessoa idosa como alguém que produz ou pode começar a produzir cultura", explica o também doutor em Linguística.
"Dor da separação"
O amor nos tempos de corona, do Nankupé Tupinambá Fulkaxó, 52 anos, foi escrito na ocasião em que o isolamento social, decorrente da pandemia, foi decretado. À época, o autor, da etnia Tupinambá e Fulkaxó, ficou três meses separado da esposa. "De repente, tudo fechou e ficamos em aldeias separadas. Eu estava na Bahia, e ela, em Sergipe. Como fiquei bastante inspirado pela saudade, escrevi todo o conto em duas horas", relata.
Nankupé é jornalista e possui pelo menos três livros publicados na literatura indígena. Por meio de suas publicações, busca quebrar estereótipos e lutar por reparação histórica. "A escrita é também uma forma de militância pelas pautas indígenas", conta. Atento às publicações da UnB, pretende participar da seleção de doutorado da universidade. Sobre o Concurso Voa, não poupa elogios: "É uma forma de divulgarmos o nosso trabalho e termos reconhecimento".
Incentivo
Na Uniser, há diferentes projetos que visam formar lideranças na maturidade e promover a intergeracionalidade, isto é, a relação saudável entre pessoas de diferentes gerações. Foi Margô Karnikowski, coordenadora fundadora do programa, quem convidou Renato a criar um projeto literário, o Concurso Voa. "Além disso, a iniciativa também foi uma maneira de homenagear um aluno que nos deixou. Enquanto poeta, ele tinha o sonho de publicar um livro e nos inspirou", afirma o professor.
Podem participar autores nacionais, com 45 anos ou mais de idade, já publicados ou não, desde que o conto submetido seja totalmente inédito. Os textos podem ser enviados nas modalidades escrita (digitado ou manuscrito), oral e na Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Durante a primeira edição do Concurso Voa, 68 pessoas inscreveram-se e, ao final do processo, 32 textos foram selecionados para fazer parte do livro, já publicado. Na edição seguinte, 2023-2024, mais de cem contos foram enviados e estão em processo de avaliação. A previsão é que está última edição seja lançada ainda neste ano.
Para Mônica Moreira, 58, além de exercitar o prazer pela escrita, a participação no Concurso Voa foi uma oportunidade de conhecer outros trabalhos e autores. "Depois que a gente se aposenta, fica difícil manter contato com pessoas mais distantes", diz a administradora financeira aposentada. Apesar de não ter pretensão de ganhar dinheiro como escritora, ela se sentiu inspirada a escrever um livro, a biografia de seus pais.
A família também foi tema do seu conto, Ressignificando — sempre!, publicado pelo projeto do Uniser. "Quis contar o quanto meus pais tiveram que se reinventar durante a pandemia, precisando se acostumar ao isolamento e à falta dos netos. Isso exigiu uma mudança de comportamento por parte de todos e nos fez percebe, mais do que nunca, a importância da ciência e principalmente das vacinas", resume. Para Mônica, o incentivo para escrever é um complemento ao entusiasmo de pessoas idosas, rotineiramente invisibilizadas.
Deise Abreu Pacheco, 53, atua na fronteira entre literatura, filosofia e artes da cena e teve na publicação de seu conto Um diário para Francisca Miquelina, 261, a oportunidade de divulgar o seu trabalho como escritora. A informação sobre o concurso se deu pelas redes sociais.
"Trata de um diário escrito por uma mulher chamada Francisca, o mesmo nome da rua onde fica um apartamento que ela costumava frequentar em festas e celebrações com suas amigas. Durante a pandemia, ela retoma a memória de seus vínculos de amizade, cujo convívio foi então interrompido, para também refletir sobre suas angústias acerca de sua vida e da vida em comum", explica.
A publicação da primeira edição do Concurso Voa está disponível na internet e pode ser acessada em PDF, no Google Livros ou pelo Kindle, da Amazon. As inscrições para a terceira edição do projeto devem ocorrer ainda nesta ano.