Somente aos 42 anos de idade que a médica veterinária Christiane Helena Guillen Veloso conseguiu colocar o nome do pai que a criou na certidão de nascimento e nos documentos de identificação. Christiane convive com o pai afetivo desde que tinha dois anos de idade, mas a alteração na filiação foi possível somente em 2018, graças a uma decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que, por meio do Provimento 63, autorizou o reconhecimento da paternidade socioafetiva. A alteração pode ser feita em qualquer cartório de registro civil.
Somente no Distrito Federal, até o fim de 2023, um total de 2.184 crianças não tinham o nome do pai no documento. O dado é da Central de Informações de Registro Civil (CRC), base administrada pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen). O levantamento mostra que, entre 2016 e 2023, o número de nascimentos caiu 18,7% no DF, enquanto a quantidade de crianças sem nome do pai na certidão cresceu 10,6%, mesmo em um cenário em que os reconhecimentos de paternidade subiram 86% no mesmo período.
A advogada Vera Chaves de Azevedo, especialista em Direito Civil, explica que, pela lei, não há um período específico de convivência para solicitar o reconhecimento da paternidade socioafetiva. "O fundamental é a comprovação concreta do vínculo afetivo duradouro e estável que se criou ao longo do tempo", esclarece. "A paternidade socioafetiva é fundamentada em princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana, o melhor interesse do filho ou filha e o princípio da afetividade. A relação deve ser equivalente aos laços de carinho, cuidado, convivência, apoio e responsabilidade que normalmente existem entre pais biológicos e seus filhos", acrescenta.
Apesar de ter sido registrada pelo genitor, Christiane nunca teve uma relação muito próxima com o pai biológico. O afeto e presença paterna foram preenchidos pelo padrasto, que ela sempre considerou como pai. "A gente esquece que não é biologicamente ligado. Para mim, ele é o meu pai. Nós temos um encontro de almas de pai e filha. Mas faltava isso na nossa vida, esse registro documentado", desabafa. "Desde que me separei, em 2012, eu moro com ele e com minha mãe. Sou eu quem cuida de todas as questões de saúde, exames, consultas, decisões médicas. Portanto, fez-se ainda mais necessário o registro de paternidade nos documentos", completa.
Hoje, Christiane tem o nome dos dois pais nos documentos e carrega, orgulhosa, o sobrenome daquele que ela considera "do coração". "Para mim, foi como se eu tivesse renascido. Eu sempre fui filha, e esse era um direito meu que mudou minha vida quando consegui conquistá-lo perante à lei", emociona-se.
Ter o nome do pai na certidão de nascimento garante uma série de direitos básicos, como pensão alimentícia, plano de saúde, herança, entre outros. "Nas últimas décadas, a legislação avançou, significativamente, no reconhecimento da paternidade. A Lei 8.560/92 foi um marco ao facilitar esse processo, permitindo que a mãe informe ao cartório o nome e endereço do suposto pai, para que o próprio cartório encaminhe o procedimento ao juiz", explica Paulo Henrique Gama, presidente da Arpen-DF. "Além disso, a legislação atual permite que o pai reconheça a paternidade a qualquer momento diretamente no cartório de registro civil, de forma gratuita. Assim, não há impedimentos legais para que os pais regularizem o registro de filhos sem paternidade, de maneira rápida e sem custos" completa.
Afeto e segurança
Presente na vida de Amanda desde que ela ainda estava no ventre da mãe, o aposentado Sérgio Armelin, 65 anos, é o porto seguro na vida da jovem de 24 anos. "Ele sempre foi muito presente, carinhoso e atencioso comigo. Ele me levava à escola, estava presente nas apresentações e nas atividades que a vida escolar envolvia. Nos estudos, sempre procurou comprar livros que pudessem me auxiliar a expandir meu conhecimento. Além disso, muitas vezes, me ajudou a estudar, tanto na escola quanto na faculdade", relata Amanda. "Sempre fui muito mimada por ele e há algum tempo ele tem gostado de escolher roupas para comprar para mim. Ele sempre se preocupou muito com a minha segurança e bem-estar, sendo uma rede de apoio muito sólida", completa.
Sérgio não é o pai biológico de Amanda, mas na prática, é a figura paterna na vida dela e fez o reconhecimento de paternidade afetiva perante a lei. "A minha relação com ela em nada difere da minha com os meus outros filhos, que são biológicos. Meus pais a tratam como neta e os meus filhos a tratam como irmã. Somos uma família como qualquer outra", diz.
No mesmo ano em que o registro da paternidade socioafetiva foi autorizada por lei, Sérgio registrou perante a lei a paternidade de Amanda, que já era considerada filha desde que veio ao mundo. "Ele é uma das pessoas que mais admiro no mundo. Acredito que, se ele não tivesse entrado na minha vida, ela seria completamente diferente, pois ele me possibilita entrar em contato com experiências distintas, compartilha um pouco da sua visão de mundo e faz com que eu me sinta muito amada. Fico muito feliz que a vida tenha se encarregado de que fosse assim", declara a filha.
Ações
No DF, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) e a Defensoria Pública do Distrito Federal (DODF) têm atuado para incentivar reconhecimentos de paternidade por meio de mutirões e campanhas.
Há 22 anos, o MPDFT, por meio do programa Pai Legal, ajuda a garantir o direito de crianças e adolescentes de terem o nome do pai na certidão de nascimento. O projeto atua em três frentes, a Promotoria de Defesa da Filiação (Profide) entra em contato com as mães cujas crianças foram registradas sem o nome do pai; mães cujas crianças e adolescentes que estão matriculados na rede pública de ensino e não possuem o nome do pai e mães de crianças e adolescentes que solicitam carteira de identidade sem o nome do pai.
Por meio da iniciativa, já foram realizados cerca de 17 mil reconhecimentos. A investigação de paternidade pode ser solicitada por meio de contato com a Profide pelo e-mail paternidade@
mpdft.mp.br ou pelo celular/Whatsapp (61) 99363-5627.
Estão abertas também as inscrições para a 3ª campanha "Meu pai tem nome". A iniciativa, realizada pela Defensoria Pública do Distrito Federal (DODF) em parceria com o Conselho Nacional dos Defensores Públicos-Gerais (Condege), tem o objetivo de reduzir o número de registros de pais ausentes no país por meio da oferta gratuita de testes de DNA, além de sessões extrajudiciais de mediação e conciliação para a efetivação do direito de filiação, paternidade e maternidade. Para participar do mutirão, os interessados devem se inscrever por meio do número (61) 98275-2065.
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