Piratas das estradas

Motoristas de ônibus admitem ilegalidades em viagens: 'Regular? Só na Rodoviária'

Na segunda reportagem da série, o Correio expõe a atuação de empresas de ônibus de viagem sediadas na capital. Para fugir da fiscalização, motoristas se comunicam em grupos, avisam sobre pontos de bloqueio e seguem caminhos alternativos e perigosos

Um roteiro de irregularidades que se repete em todo o Brasil. Em veículos com condições muitas vezes precárias, motoristas de ônibus clandestinos cruzam o país e colocam em risco a vida de passageiros diariamente. Para driblar a fiscalização nas rodovias, não hesitam em recorrer a qualquer recurso: usam grupos de WhatsApp para trocar mensagens e avisar sobre pontos de bloqueio, desviam da rota para pistas precárias e marginais e tentam até subornar agentes de segurança e fiscais para evitar multas. Na segunda reportagem da série Piratas das Estradas, o Correio revela como funciona esse tipo de serviço oferecido por empresas com sedes na capital federal e no Entorno do DF. 

Numa quinta-feira, em uma rua deserta, no Setor M Norte de Taguatinga e logo atrás de um supermercado, passageiros, incluindo crianças, esperam por dois ônibus de viagem rumo ao Maranhão. Um dos veículos presta serviço a uma empresa de turismo com sede no Jardim Ingá, cidade de Goiás distante cerca de 46km do Plano Piloto. O Correio apurou que a viação não tem CNPJ cadastrado na Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) e o coletivo, apesar de ter a autorização para circular por fretamento — mediante o contrato fechado para um grupo de pessoas e destino específico — funcionava de forma aparentemente "regular", vendendo passagens individuais, com paradas em várias cidades distintas. A outra empresa que estava no ponto está cadastrada para funcionar nas duas modalidades. 

O Correio simulou a compra de uma passagem com a companhia do Jardim Ingá, que operava de maneira irregular. Para a cidade de Barra do Corda (MA), por exemplo, a viagem sairia por R$ 330, 34% mais barato do que um bilhete comprado na Rodoviária Interestadual (R$ 505). O ônibus faz viagens para o estado nordestino às segundas e às quintas-feiras, saindo sempre do mesmo local, em Taguatinga. Longe das normas rigorosas de um terminal, as empresas não têm horário fixo para sair do ponto e chegam a atrasar mais de duas horas.

Um casal de Peritoró (MA) aguardava na fila com outras pessoas. Eles contam que vieram passar alguns dias na casa de familiares, em Brasília, mas estavam voltando para casa. Questionados se se sentiam seguros em transportes como esses, responderam: "Só é irregular, parece, né, mas o preço é bem em conta. Nessa empresa é a primeira vez, mas já viajamos de ônibus e nunca deu nada. Pelo menos até agora".

"Regular? Só na Rodoviária"

A ANTT dispõe de dados abertos sobre veículos cadastrados para funcionar de maneira regular e por fretamento. Um levantamento produzido em julho deste ano mostra que, na modalidade regular, estão inscritas 337 companhias. No caso de viagens destinadas a grupos coletivos ou excursões, o quantitativo é de 9.189 empresas. A justificativa para a diferença entre os serviços está na lista de exigências da ANTT. A empresa deve apresentar uma série de documentos — como regularidades jurídica, financeira, fiscal, trabalhista e qualificação profissional— para conseguir a autorização para operar em ambas as modalidades de forma regular. 

A reportagem contactou ao menos seis empresas que atuam ilegalmente no DF. Dessas, três trabalham com o serviço de fretamento e oferecem pacotes de viagens tentadores, com preços abaixo do mercado. Uma delas, sediada em Samambaia, acumula 26 mil seguidores no Instagram e usa as redes sociais para a divulgação de excursões para lugares turísticos. Para o ano-novo, por exemplo, a empresa anunciou um pacote de 12 de dezembro a 2 de janeiro de 2025 para Porto Seguro (BA). O valor é de R$ 1,4 mil por pessoa para quem comprar no primeiro lote e inclui transporte, hospedagem, café da manhã e serviço de bordo. 

A companhia não está cadastrada na ANTT, portanto, não pode funcionar. O Correio entrou em contato com a agência e questionou sobre a regularidade da viagem. Por áudio, um homem negou a propriedade do ônibus e passou o contato do responsável por oferecer os veículos. Pedimos o CNPJ e a placa do coletivo, mas não foram informados.

Ainda na capital, uma outra empresa no mercado há 11 anos esconde inúmeras irregularidades, a começar pelo CNPJ inapto por omissão de declarações. A companhia trabalha no regime de fretamento e um dos responsáveis, um jovem de 20 anos, é o mesmo que administra um grupo por nome de "Elite Clandestina". 

No Instagram, a página reúne quase 16 mil seguidores, e no WhatsApp, mais de 300 pessoas. Durante 24 horas, motoristas do país inteiro avisam sobre pontos de fiscalização e sugerem rotas alternativas. "Esses caras são infelizes (fiscais da ANTT). Se eles quiserem arrumar confusão, arrumar isso ou aquilo, eles acham, só para apreender o carro (ônibus)", disse um dos membros. 

O valor de uma viagem na modalidade fretamento varia de acordo com o destino e a quantidade de passageiros. O Correio fez um orçamento com uma empresa inabilitada para esse tipo de serviço. O ônibus tem 46 lugares, sendo duas poltronas dos motoristas. O frete base, segundo o responsável, custa em torno de R$ 20 mil, a depender da cidade e diárias. "Amiga, regular só na Rodoviária", respondeu ao ser questionado sobre a regularidade.

Kayo Magalhães/CB/D.A Press - Passageiros do transporte pirata aguardam a chegada do ônibus

Fiscalização

Os dados da ANTT evidenciam o alto fluxo de transportes irregulares que circulam nas malhas viárias do país. Entre janeiro e 24 de julho deste ano, a Agência fez um total de 115.229 fiscalizações por todo o Brasil e lavraram 16.660 autos de infração. Dessas operações, 78.985 foram feitas em transportes regulares, 2.011 em coletivos que funcionam por fretamento e 407 em clandestinos. 

Quanto às multas aplicadas, os transportes regulares lideram o ranking, com 9.429 autos de infração em menos de seis meses. Os coletivos por fretamento receberam 883 multas nesse período e os clandestinos, 865. Em reais, as três modalidades superam R$ 48 milhões em penalidades diversas, seja por falta de documentação, excesso de peso ou más condições do veículo. 

Só no DF, entre janeiro e 23 de maio, foram aplicadas 309 autuações, segundo a ANTT. Outro dado é em relação às apreensões de veículos clandestinos, que somam 296 de janeiro a 4 de junho. O superintendente de Fiscalização de Serviços de Transporte Rodoviário de Cargas e Passageiros da ANTT, Felipe Ricardo da Costa, destacou que as multas são variadas: R$ 9 mil para ônibus sem passageiros e R$ 12 mil quando transportam pessoas. Em viagens longas, há problemas adicionais, como crianças sem passaporte, e as infrações podem chegar a R$ 40 mil.

"As passagens de transporte clandestino costumam ser entre R$ 10 e R$ 50 mais baratas. No entanto, em caso de acidente, o seguro não é válido, e o transportador clandestino abandona os passageiros, não cumprindo suas obrigações. Em uma situação recente em que atuamos, a empresa já era reincidente, e nossa equipe apreendeu o ônibus. Infelizmente, por ser um negócio muito lucrativo, os envolvidos no transporte irregular não desistem facilmente", relatou Costa.

A diferença entre o serviço irregular e o ilegal é que as empresas de ônibus interestaduais são obrigadas a emitir um bilhete no terminal rodoviário e, para viagens de ida e volta, utilizam o mesmo ônibus. "O transporte clandestino é identificado pela falta de cadastro e pelo uso de carros de passeio. Não existe cadastro de carro de passeio para transporte regular. Aqueles que operam fora das plataformas regulamentadas e não aceitam corridas por elas também são clandestinos", salientou.

Leticia Pineschi Kitagawa, diretora da Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (Abrati), argumenta que as empresas de transporte clandestino são altamente estruturadas, com cargos e funções e, na maioria dos casos, com trabalhadores contratados por meios informais. 

Os ônibus irregulares têm "características comuns" de fácil identificação, avalia a especialista, que exemplifica. "Eles (veículos) sempre partem de pontos centralizados, seja em postos, shoppings, estacionamento de hotel. Não saem de um terminal. Sempre é uma empresa com nome desconhecido. Outra coisa é que toda companhia deve manter um guichê no terminal rodoviário", pontua.

Para além da irregularidade, está a vida de milhares de passageiros que, atraídos pelo preço baixo ou até desconhecimento, se arriscam nessa empreitada. "Não existe espaço para amadores. Precisa ser profissional. O transporte lida com cargas valiosas, que são vidas. Uma vez perdida, não há como compensar", frisa Leticia Pineschi.

Kayo Magalhães/CB/D.A Press - "Amiga, regular só na Rodoviária", respondeu o responsável por um ônibus que faz o serviço irregular de viagens

Prejuízos

Com passagens vendidas até pela metade do preço, as empresas irregulares deixam de recolher impostos e causam danos severos àquelas que operam de forma legal. A pedido do Correio, a Associação Nacional das Empresas de Transporte Rodoviário de Passageiros (Anatrip) produziu dois levantamentos que revelam os prejuízos financeiros referentes aos bilhetes vendidos para viagens de Brasília com destinos a São Paulo e Piauí.

No primeiro trimestre deste ano, 35.705 passageiros viajaram em ônibus regulares de Brasília a São Paulo, gerando R$ 6,5 milhões para as empresas regulares — valor médio da passagem de R$ 176,60. Contudo, por ser uma das rotas mais lucrativas do país, o transporte clandestino tenta se infiltrar no mercado. Segundo a instituição, no mesmo período, R$ 700 mil deixaram de ser arrecadados devido ao transporte irregular — 12% da arrecadação total.

Outro trecho bastante visado pelas empresas à margem da lei é o de Brasília ao Piauí. No primeiro trimestre deste ano, 25.593 passageiros viajaram nessa rota, gerando R$ 5,6 milhões para as empresas de transporte regular. De acordo com estimativas dos proprietários que operam nesse trajeto, considerando que o valor médio da passagem é de R$ 214,67, houve um prejuízo de meio milhão de reais devido ao transporte clandestino, o que representa 9% da arrecadação total.

"O transporte clandestino geralmente oferece condições salariais insuficientes aos seus colaboradores para poder vender os tickets a preços mais baixos. Motoristas e outros funcionários são, muitas vezes, mal remunerados e trabalham sem os benefícios e a segurança proporcionados pelas empresas regulares. Essa situação não só prejudica os trabalhadores, mas também compromete a segurança dos passageiros, já que motoristas exaustos e desmotivados têm maior probabilidade de cometer erros e causarem acidentes nas rodovias do país", avalia o secretário-executivo da entidade Gabriel Oliveira.

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Na primeira reportagem da série, o Correio falou sobre o grave acidente envolvendo a empresa de viagem Íris, que deixou cinco mortos em outubro do ano passado. Ao Correio, o promotor de Justiça Renato Ercolin, que atua no caso, afirmou que não se trata de um mero acidente ocasionado por descuido. “Não há dúvida sobre a responsabilidade dos réus nas mortes e nas tentativas de homicídio. Isso implica na responsabilização civil, bem como na responsabilização penal. Não foi um acidente. A colisão que ocasionou as mortes decorreu do comportamento consciente do motorista do ônibus, que não se importou com as consequências do seu ato e assumiu o risco do que viesse a acontecer, apoiado pelo corréu”, pontuou o promotor.

O promotor, que já atuou em casos semelhantes, ressalta que, nessa fase do processo sobre o acidente do ano passado, serão apresentadas as alegações finais, oportunidade em que poderá ser formulado novo pedido de prisão dos dois acusados.

CBMDF - O ônibus que fazia o trajeto Piauí-Brasília tombou enquanto o motorista fugia de uma abordagem da ANTT, que constatou irregularidades no veículo

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