Nos últimos 10 anos, a quantidade de veículos nas vias do Distrito Federal passou de 1,4 milhão para 2 milhões — um aumento de 35,8%, segundo o Departamento de Trânsito (Detran-DF). Dessa frota, 67,5% são de automóveis, que também seguem uma tendência de crescimento. Muitas vezes usados por necessidade ou como instrumento de trabalho, os carros fazem parte da paisagem local, mas seu uso excessivo também provoca preocupação. Especialistas ouvidos pelo Correio alertam para o colapso na mobilidade da capital.
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Em pesquisa que investigou quais motivos mais levam as pessoas a utilizarem automóveis para se locomover no DF, a professora e doutora em transporte Zuleide Feitosa, da Universidade de Brasília (UnB), concluiu ser a necessidade a principal razão. "A população não confia no sistema de transporte público, pois percebe que, com o carro, é possível cumprir suas demandas e chegar no horário adequado em suas atividades", detalha.
O acúmulo desses veículos, porém, resulta em um ambiente adoecedor, tanto para os motoristas quanto para os pedestres. "As emissões de carbono são altíssimas, sem contar a poluição sonora, devido ao ruído dos motores e das buzinas. O estresse, por sua vez, está associado aos congestionamentos em horários de pico", alerta a especialista. A longo prazo, isso pode ocasionar doenças no pulmão e no coração (em vista dos gases tóxicos), problemas na coluna e transtornos emocionais. Ao meio ambiente, a situação não é diferente. "Os desastres resultantes das mudanças climáticas têm mostrado que já passou da hora de valorizarmos a mobilidade sustentável", completa Zuleide.
Ainda segundo a professora, o uso exacerbado do automóvel aumenta o risco de colisões, porque, uma vez esgotada a capacidade de uso da via, mais o condutor precisará se esforçar cognitivamente para dar conta de todos os estímulos na frente, nas laterais, atrás e dentro do carro. "Assim, o excesso de estímulos visuais que requisitam atenção aumentam a possibilidade e a recorrência de acidentes", afirma.
No ano passado, ocorreram 242 acidentes fatais no DF, dos quais 103 se deram por colisões, conforme dados do Detran. "Nosso trânsito é considerado agressivo, pois o sentimento de autonomia que os veículos individuais nos dão, além da distração, são os mais importantes indicadores de acidentes, inclusive, fatais", enfatiza Zuleide.
Rotina desgastante
Há dois anos, June Alves, 38 anos, mudou-se da Asa Norte para Águas Claras e precisou se adaptar a uma nova rotina de horários. Servidora UnB, ela acorda 30 minutos antes do que seria necessário para garantir que não se atrasará para o trabalho. Mesmo assim, o trajeto, de uma hora, não se torna menos penoso. "É muito estressante dirigir em Brasília, principalmente com a reforma na EPTG (Estrada Parque Taguatinga). Todos os dias, passo por alguma aflição, seja pelo congestionamento seja pela irresponsabilidade dos motoristas. Isso sem contar a dor nos ombros", destaca.
June diz que ser fechada por outros condutores é uma das situações comuns que a aborrecem. "Outro problema é quando eles (motoristas) aceleram no acostamento em um trânsito pesado e nos pegam de surpresa quando querem retornar à via", exemplifica. Em dias de sorte, a servidora leva apenas meia hora para chegar ao destino. Questionada se considerou usar o transporte coletivo, ela sentencia: "Tentei, mas é contraproducente e me faz gastar mais tempo, porque precisaria ir de metrô até a Rodoviária e, depois, pegar um circular para a UnB. Não dá".
A mãe de June, Sueli Alves, 68, define o trânsito da capital como imprudente. "Não estamos na mesma situação de São Paulo, que acumula muitos problemas de mobilidade; mas temos um trânsito agressivo. Acredito que, hoje, com o excesso de carros nas vias, as pessoas ficaram mais impacientes. Já riscaram o meu carro e até chutaram meu retrovisor durante essas situações de estresse. As buzinadas, então, são recorrentes. De fato, é desgastante", resume a empreendedora, que tem uma empresa de homecare.
"De outro mundo"
O modelo rodoviarista, que favorece o transporte individual, é marca registrada em Brasília. No projeto de Lucio Costa, foram utilizadas técnicas rodoviárias modernas para a época, como cruzamentos em níveis diferentes, tesourinhas e amplas avenidas. "Não consideraram que a população da região fosse se expandir tanto", pondera Benny Schvarsberg, arquiteto, urbanista e professor da UnB. "Hoje, viadutos e mais pistas duplicadas são investimentos em mais 'carrodependencia' e insustentabilidade", ressalta.
Na análise do especialista, esse fenômeno no DF relaciona-se com o nível econômico. "Nas outras cidades do DF de renda alta e média, há praticamente um carro por pessoa a partir dos 18 anos; nas de baixa renda, como Estrutural, Itapoã, Varjão, Arapoanga e outras, é zero ou, no máximo, um carro velho por residência. Ainda assim, nossa frota ultrapassa os 2 milhões de veículos para cerca de 3 milhões de habitantes, uma das mais altas taxas de motorização do país", assinala Schvarsberg.
A doutora em transporte Zuleide Feitosa reforça que a classe trabalhadora é quem mais sofre por depender de carros, visto que se obriga a comprar um automóvel, por não confiar no transporte coletivo nem no sistema de mobilidade. "Eles (classe trabalhadora) retiram uma parcela de seu rendimento para manter esse veículo — pagar as prestações, a manutenção e arcar com o alto preço da gasolina. Isso altera a qualidade de vida dessas pessoas", ressalta.
Para a fisioterapeuta Júlia Lago, 22, deslocar-se de carro é essencial para conseguir cumprir os horários dos atendimentos domiciliares que faz durante a semana, muitos com pacientes idosos ou de mobilidade reduzida. Do Noroeste ao Jardim Botânico, ela passa por várias regiões. Por isso, depender de transporte público não é uma opção. "Alguns locais não têm parada perto ou ônibus direto, fora a bolsa que carrego, que é muito pesada. Não dá (usar ônibus)", explica.
Porém, a facilidade em adaptar a rotina de atendimentos, por conta do deslocamento de carro, muitas vezes dá lugar ao estresse com os congestionamentos que, segundo Júlia, não se restringem mais aos horários de pico. "Tenho evitado visitar minha família no Jardins Mangueiral, porque o trânsito está uma coisa de outro mundo", lamenta. "Além disso, com a gasolina ficando mais cara e os estacionamentos, mais escassos, está cada vez mais difícil depender do carro. Então, não tem para onde correr", completa.
O ideal, segundo a fisioterapeuta, seria um maior investimento em vias seguras, estacionamentos próximos aos comércios, aumento da frota de ônibus e ruas com faixas exclusivas para esses veículos, além do aumento de rotas alternativas.
Investimentos
O secretário de Mobilidade Urbana, Zeno Gonçalves, detalha investimentos em curso pela pasta para melhorar o transporte público e reduzir a dependência de carros no Distrito Federal. "Estamos implementando um conjunto de ações de médio a curto prazos. Entre elas, destacam-se o BRT Oeste e BRT Norte, além das obras de ampliação da terceira faixa de Planaltina ao centro, que permitirão que os ônibus circulem em faixas exclusivas para maior eficiência", explica.
"Apenas no BRT Norte, investiremos um R 1,5 bilhão, incluindo R$ 180 milhões para a construção de quatro novos terminais rodoviários, que abrangem Planaltina, Mestre D'Armas, Sobradinho e Asa Norte", enumera Zeno.
Outra iniciativa mencionada por ele é a implementação da zona verde, que criará 55 mil novas vagas de estacionamento na região central de Brasília. "O objetivo é incentivar o uso do transporte público e desestimular o de carros particulares para o centro, garantindo que os estacionamentos comerciais sejam utilizados de forma rotativa", afirma o gestor.
Além disso, o Plano Diretor de Transporte Público está delineando os investimentos para os próximos anos. "Prevemos a aquisição de 250 ônibus entre 2024 e 2025 para expandir o sistema, em resposta à crescente demanda. Também enfrentamos pressão do entorno, pessoas que necessitam se deslocar até Brasília", acrescenta. "Atualmente, são 919 linhas, quase três mil ônibus e 20 mil viagens diárias em diversos horários", completa.
Zeno destaca ainda que um dos desafios para a expansão viária é o contínuo surgimento de novas áreas urbanas no Distrito Federal.
Artigo
Como vencer a "carrodependência"?
Por Marcelo Simas, Uirá Felipe Lourenço (Brasília para Pessoas), Allan Sousa e Ana Júlia Pinheiro (Rodas da Paz) — integrantes da Rede Urbanidade
Será que estamos conscientes das consequências econômicas, do dano ambiental e dos prejuízos à saúde acarretados pelo uso do carro? Talvez nunca nos tenhamos feito esta pergunta - a carrodependência se tornou natural entre nós, especialmente em Brasília. O que propomos para revertê-la é usar a mesma estratégia que nos tornou "adictos" dos automóveis.
Quase não caminhamos mais, nem pedalamos, nos trajetos do dia a dia. O transporte coletivo é sempre a última opção, até mesmo pela sua precariedade.
Mas há saída. Para mudar, precisamos fazer o oposto do que se fez até aqui: desestimular o uso do automóvel e apontar alternativas de impacto positivo à qualidade de vida. Os investimentos públicos, concentrados em promover a circulação dos automóveis, deveriam ser direcionados ao estímulo à mobilidade ativa, ao transporte coletivo de qualidade. Nenhuma cidade do mundo resolveu seus problemas de mobilidade sem aplicar recursos na expansão ou implantação de metrôs, redes ferroviárias e veículos leves sobre trilhos (VLT).
O transporte coletivo, subsidiado com recursos públicos, deveria ser cobrado por qualidade na prestação do serviço; com ônibus seguros e confortáveis, trajetos desenhados a partir das necessidades do usuário e horários definidos.
A mobilidade ativa é estimulada com calçadas de qualidade, dotadas de acessibilidade, e com ciclovias e estruturas cicloviárias. Não é sonho. Poderíamos citar dezenas de cidades no mundo que fizeram isso. Seria desejável ainda cobrar pelos estacionamentos em locais públicos, desde que o total arrecadado fosse usado apenas para financiar a mobilidade ativa e o transporte coletivo.
Brasília tem potencial para ser uma referência em mobilidade para outras cidades do país. Nossa proposta: vamos começar por aqui.
Sinistros fatais
Colisão: 103
Atropelamento de pedestre: 85
Choque com objeto fixo: 20
Queda: 20
Capotamento/tombamento: 7
Atropelamento de animal: 3
Demais tipos: 4
Total: 242
Fonte: Detran-DF, dados de 2023
*Colaborou Mariana Saraiva
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