Investigação

Falsa biomédica atuava em clínica irregular e não tinha formação

Mulher responsável por aplicar a substância PMMA na modelo Aline Ferreira não tinha nenhum diploma ou formação para atuar na área estética. Grazielly Barbosa responderá pelo crime lesão corporal seguida de morte, entre outros

Goiânia — Da clínica irregular ao exercício ilegal da profissão, são muitos os erros que cercam a morte da influencer Aline Ferreira, 33 anos. A brasiliense morreu depois de se submeter ao procedimento estético de preenchimento de glúteos com a substância chamada PMMA (polimetilmetacrilato), aplicado pela falsa biomédica Grazielly da Silva Barbosa, presa pela Polícia Civil do Estado de Goiás (PCGO). Nesta quinta-feira (4/7), familiares e amigos deram o último adeus à modelo, em clima de forte comoção. Reunidos no velório e enterro da modelo, clamaram por justiça. 

A morte de Aline é investigada pela polícia e serviu como alerta sobre os extremos ocultos no mundo da beleza: ausência de fiscalização, utilização de produtos e materiais não autorizados e muitas lacunas. A modelo deixou para trás sonhos, metas, marido e dois filhos. Agora ela faz parte da triste estatística de mulheres ludibriadas por padrões de beleza perfeitos, por propagandas e falácias. 

Por meio de amigos, Aline conheceu Grazielly Barbosa, dona do centro de estética Ame-se, localizado no centro de Goiânia. Nas redes sociais, a mulher se apresentava como biomédica, mas ela apenas frequentou três semestres de medicina no Paraguai, e divulgava inovações e métodos revolucionários estéticos. Ela citava, por exemplo, o chamado bioestimulador de glúteo — capaz de aumentar de maneira "natural" os glúteos, deixados rígidos e atraentes. 

Inaugurada em novembro de 2023, a suposta clínica funcionava de maneira irregular, sem alvará nem as licenças devidas. Também ficava em terreno afastado e numa área considerada pouco segura e confiável. O prédio, que é pouco mais do que uma pequena loja, fica ao lado de um terreno baldio. Agora está de portas fechadas e interditado por ausência de documentação e  profissional com habilitação técnica. 

Reprodução/Instagram @linefrreira - Aline Ferreira começou a passar mal depois do procedimento estético

 Sem diploma

Aline saiu de Brasília com uma amiga para ir a Goiânia fazer o procedimento com Grazielly, na tarde de 23 de junho. Em depoimento prestado à polícia, a colega da modelo disse que, em momento algum, a dona do local mencionou sua formação, detalhou eventuais riscos que a intervenção poderia acarretar. Muito pelo contrário, disse que era algo tranquilo, simples e que tinha feito em outras pacientes. 

Sem saber que tratava-se da substância PMMA, Aline fechou um pacote de três sessões para a aplicação de 90ml do gel, no valor de R$ 3 mil — valor três vezes abaixo do mercado. Na primeira delas, em 23 de junho, colocou 30ml. "A autuada não fazia uma avaliação prévia dos pacientes. Os interessados nos procedimentos chegavam até à clínica, passavam pela intervenção estética e eram liberados. Tudo sem qualquer tipo de prontuário ou exames prévios", afirmou Débora Melo, delegada-adjunta da Delegacia Estadual de Repressão a Crimes Contra o Consumidor (Decon) de Goiânia.

Segundo os familiares de Aline, a influencer passou mal no mesmo dia do procedimento. Em Brasília, foi internada no Hospital Regional da Asa Norte (Hran), transferida a um hospital particular da Asa Sul e teve complicações após contrair uma infecção generalizada. 

Após a morte da modelo, a versão falsa de Grazielly foi revelada pela polícia. Na quarta-feira, os policiais civis da Decon e agentes da Vigilância Sanitária estiveram no centro estético para averiguar possíveis irregularidades e notaram um alto fluxo de pacientes. "Nossa intenção era ver as questões de legalidade do local, até porque não esperávamos encontrá-la lá, porque a família da vítima havia falado que a autuada teria diminuído o contato com os parentes e até desativado as redes sociais", frisou a delegada. 

Os investigadores descobriram que a clínica não tinha alvará de funcionamento e que Grazielly não era formada em nenhum curso superior na área da saúde. A falsa profissional foi questionada sobre a graduação em biomedicina. Segundo ela, fez cursos "livres". No entanto, não apresentou diploma ou certificado dessas especializações. Mesmo se fosse biomédica, segundo a delegada, Grazielly não poderia injetar qualquer tipo de substâncias em pacientes, pois é uma função desempenhada por médico profissional.

Grasielly responde por três crimes: exercício ilegal da profissão, execução de serviço de alta periculosidade e indução do consumidor ao erro. Segundo a delegada Débora Melo, um novo inquérito será aberto para apurar o delito de lesão corporal seguida de morte. "Estamos aguardando o laudo necroscópico, que está sendo feito no IML de Brasília. O resultado preliminar dizia a causa da morte a esclarecer. Precisamos saber se há como comprovar o vínculo do procedimento e a morte", explicou. 

Ao longo dos dias, os policiais vão colher novos depoimentos e fazer novas diligências. Alguns celulares foram apreendidos, incluindo o de Grazielly. De acordo com a delegada, os aparelhos passarão por perícia e poderão revelar outras pessoas envolvidas. A polícia quer saber onde a falsa biomédica comprava as substâncias e se recebia a ajuda de alguém. 

O Correio tentou contato com o advogado que representa Grazielly, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição. 

Muita dor e revolta na despedida

Alegre, feliz e cheia de saúde. Assim, familiares e amigos descreveram Aline Ferreira, sepultada na manhã desta quinta-feira (4/7), no Templo Ecumênico do Cemitério do Gama. Cerca de 70 pessoas compareceram à despedida, para orar, cantar e soltar balões brancos em homenagem à jovem. A certeza de que o procedimento seria desnecessário era unânime entre os presentes. "Era muito linda, não precisava disso", comentou um amigo. 

Elisângela Maria Lima, 50, tia de Aline, a acompanhou durante toda a internação. Ela contou que a falsa biomédica Grazielly Barbosa — quando Aline deu entrada no Hran — pediu à família que não avisasse à equipe médica sobre a aplicação do PMMA. "Nos exames do hospital, o resultado indicou infecção de urina. Isso a fez (Grazielly) reforçar que as dores não tinham relação com o procedimento", explicou. 

Mas quando a influencer foi para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI), Grazielly se afastou da família. "Ela mandou seu pai fazer uma visita ao hospital para orar e verificar o estado de saúde da minha sobrinha. Desconfiamos e achamos uma indelicadeza. Pensei 'se ela quer saber como Aline está, que venha até aqui ou nos ligue'". A confiança da modelo na falsa biomédica se deu, segundo Elisângela, pela jovem ter feito outros procedimentos na clínica. "Como nunca tinha ocorrido problemas, achávamos que ela (Grazielly) sabia o que estava fazendo", disse. 

A balconista Maria José Alves, 55, também tia de Aline, exigiu justiça e apontou falta de fiscalização. "Não aceito que foi uma fatalidade. Essa mulher (Grazielly) sabia dos riscos do procedimento e, mesmo assim, prosseguiu, tudo por ganância. Não foi a primeira vez que esse crime ocorreu e, infelizmente, não será a última", lamentou. O tio Reinaldo Soares Batista, 64, acrescentou que a jovem estava no melhor momento da vida e conquistando o que sempre sonhara. "Era uma moça simples, mas tinha muita vontade de crescer em sua carreira, conquistar outros espaços. Queria ir para a televisão", contou. 

Na vida pessoal, Aline era muito apegada à família, principalmente aos filhos. "Era uma mãe dedicada e amiga dos seus dois meninos. Estavam sempre juntos. Há uns três anos, ela realizou o sonho de casar de véu e grinalda em uma cerimônia linda, com o atual companheiro. Fazia de tudo para ver a família unida", destacou Maria José. 

Ed Alves/CB/DA.Press - Corpo da nfluencer Aline Ferreira foi sepultado nesta quinta-feira (4/7), no Cemitério do Gama

PMMA

O polimetilmetacrilato não é vendido em qualquer lugar nem para qualquer pessoa. Trata-se de um produto comprado por laboratórios que o demandam e que possuem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Para comprar diretamente com as empresas fabricantes, o especialista precisa ter seu registro profissional cadastrado e autorizado nestes estabelecimentos. Segundo o cirurgião plástico Cesar Augusto Daher, o valor da ampola de 1 ml de PMMA varia de R$ 115 a R$ 150. O procedimento, que ainda conta com o preço da aplicação, vai de R$ 10 mil a R$ 30 mil. 

A dermatologista Cristina Salaro ressaltou que o valor do produto é bem menor do que o ácido hialurônico, por exemplo, substância biocompatível e degradável, isto é, metabolizada no organismo com o passar dos anos. "O PMMA, um material similar ao plástico, além de não ser recomendado para fins estéticos pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), não é absorvido pelo corpo", alertou. A indicação para uso medicinal, e liberada pela Anvisa, se restringe à reconstrução de contorno facial para pacientes com HIV positivo ou para corrigir alguma falha óssea, resultante de acidente ou de deficiência na região do crânio.

"A quantidade ideal por aplicação, conforme a resolução da Anvisa, gira em torno de 2 a 5ml, não mais do que isso. O problema é que o pessoal está usando 300ml no glúteo, extrapolando muito o volume regulamentado", frisou o cirurgião plástico. Os riscos da aplicação indevida incluem inflamação, infecção, formação de nódulos, de massas inestéticas e embolia (oclusão vascular com potencial de levar a necrose tecidual e óbito). A reação e rejeição ao PMMA pode ocorrer até 20 anos após a aplicação. 

O especialista Cesar Augusto Daher explicou que no fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000, o PMMA foi largamente utilizado como preenchedor facial definitivo. "Com o tempo, a gente descobriu que a substância poderia, a longo prazo, causar deformidades praticamente irreversíveis no rosto. Por isso, ainda hoje recebo pacientes que buscam corrigir essas complicações". Agora, a nova 'onda', segundo ele, é aplicar o produto no corpo, principalmente no glúteo.

"Hoje, há trabalhos sendo desenvolvidos que mostram que o PMMA, a longo prazo, pode levar o paciente a insuficiência renal crônica, em vista do aumento de cálcio e da sobrecarga nos rins. As complicações resultantes dessa substância são, sem dúvida, as mais difíceis de serem tratadas", advertiu. Cristina Salaro, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Dermatologia/DF, contou que também costuma receber, em seu consultório, pacientes que injetaram o produto no rosto. "Geralmente são massas endurecidas, algumas vezes com vermelhidão associada, que só serão removidas por meio de cirurgia plástica", disse.

Marcelo Ferreira/CB/D.A Press - O Centro de Estética Ame-se atuava sem qualquer alvará de funcionamento

 

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