Contratado há pouco mais de um mês, Robson da Silva, 37 anos, estava empolgado com o novo serviço de garçom, em um restaurante do Riacho Fundo 2. Formado em arquitetura, só pensava em juntar dinheiro para viajar pelo país como missionário evangélico. Mas os sonhos foram interrompidos de maneira brutal, após Robson ser assassinado com 24 facadas por um funcionário do estabelecimento. O motivo é que Robson advertiu o colega sobre a quantidade de água em um suco. Casos como esse são mais comuns do que se imagina. De janeiro a maio deste ano, 89 pessoas foram assassinadas, muitas por motivos banais.
A Justiça é dura contra aqueles que matam por motivos fúteis, insignificantes e que poderiam ser solucionados de forma pacífica. Esses crimes são enquadrados no artigo 121, do Código Penal, que determina pena de reclusão de 6 a 20 anos — podendo chegar a 30 anos.
Para especialistas e magistrados ouvidos pelo Correio, alguns fatores contribuem para esse comportamento, como a impaciência diante de pequenas dificuldades cotidianas, a dúvida sobre uma eventual impunidade, o descaso com o outro e a ausência de empatia.
O criminalista Adilson Valentim diz que, no Distrito Federal, o cenário é "bem diferente" de outros locais do país. "Na nossa realidade, pune-se o homicídio e se investiga bem. A polícia do DF tem uma taxa boa na apuração de crimes, em especial, os assassinatos", afirma o advogado. Ele acredita que, em geral, falta "controle emocional" por parte dos envolvidos em crimes "banais".
Valentim está convencido de que a pandemia da covid-19 contribuiu muito para esses eventos. "Com a pandemia, nós tivemos alguns problemas. Vimos algumas coisas acontecerem: pessoas morrendo, dentro de casa, onde clamavam pela liberdade. Achei que, com o fim do isolamento social, as pessoas voltariam melhor, mas, pelo contrário, voltaram pior. Hoje, mata-se por besteira. O indivíduo precisa, muitas vezes, parar, respirar, contar até 10. De repente, uma diarreia mental que você tenha, de um minuto, vai acabar com a sua vida", analisa.
Morto por um suco
Robson, que perdeu a vida por alertar o colega sobre o suco aguado, era um homem tranquilo e religioso. Cinco meses depois do crime, em entrevista ao Correio, um parente dele, que teme pela própria segurança, diz não acreditar que o arquiteto formado morreu por causa de algo tão pequeno e sem importância. "Por causa de um suco? Um suco? Eu só consigo sentir um vazio dentro de mim e nada mais, desde o dia em que ele se foi. Não consigo chorar, só existe um buraco no meu coração", desabafa.
A família soube da morte de Robson apenas no dia seguinte, após ser informada por vizinhos. "Estranhei a demora dele, mas, como era uma sexta-feira, ele tinha costume de ir para a casa de uma amiga aqui perto. Do outro lado, a amiga achou que ele estava em casa. Então, nenhum de nós estava sabendo de algo. Na hora em que soubemos, fiquei aérea, gelada por dentro. Só pedi para Deus me confortar", afirma. Ao lembrar de Robson, o que vem a mente era o que ele fazia: "Onde chegava, pregava a palavra de Deus e queria fazer o bem. Quando não estava em casa, estava no monte", detalha o familiar.
Briga de trânsito
Aos 44 anos, o feirante Cledson de Caldas Souza morreu ao levar dois tiros após uma briga de trânsito, na véspera do ano-novo de 2023. O autor do crime é um cabo da Polícia Militar (PMDF), identificado como Bruno Correa da Hora Fernandes. De acordo com as investigações, a discussão entre os dois começou em uma lanchonete de Ceilândia.
Cledson conduzia um Gol e, segundo testemunhas, apresentava comportamento alterado. O policial, que estava na lanchonete, foi até o carro e o orientou a ir embora. O feirante saiu no veículo. O PM também deixou o local, em seguida. Os dois se reencontraram em um semáforo, momento em que iniciaram uma nova discussão. O cabo alegou legítima defesa e disse que Cledson o teria ameaçado. O feirante, baleado no rosto e no braço, morreu na hora.
A Justiça considerou que foi um homicídio por motivo fútil. Théo Cardoso, primo de Cledson, apega-se às lembranças. "Ele era sempre uma pessoa muito brincalhona, que fazia amizade fácil, muito comunicativo, sorridente e solícito. Sempre foi muito batalhador. Trabalhava à noite e de dia estava na feira. Investiu o que tinha em uma banca na feira, e estava crescendo nisso", recorda.
Sem concorrência
Um assassinato a sangue frio causou revolta no DF em abril de 2022. Helena Maria, 50, e o marido, Laércio José Moreira, 54, foram mortos dentro de casa após um plano articulado pelo comerciante Hyago Lorran Franco da Silva. Laércio era dono de um quiosque de lanches, na Avenida Pau Brasil, em Águas Claras, mas o espaço passava por uma reforma e foi necessário que o comerciante se mudasse para outro ponto, próximo à barraca de Hyago.
Inconformado em "dividir" os clientes com Laércio, Hyago decidiu se vingar. Chamou três comparsas maiores de idade e um adolescente. No dia do crime, 11 de abril, o quarteto foi à casa do casal, abordou o marido e a mulher, levando os dois até a cozinha, onde foram mortos. Maria e Laércio foram encontrados abraçados, no chão, e com marcas de tiros na cabeça.
Os quatro criminosos foram presos e condenados por homicídio triplamente qualificado. Hyago, o mentor do crime, Mayzon Gustavo Berto da Silva e Vitor França dos Santos passaram por júri popular e, juntos, receberam mais de 100 anos de prisão.
Duas galinhas
Em 2022, Welvis da Cruz Lagares foi assassinado, em São Sebastião, porque um homem suspeitou que ele teria furtado duas aves do seu galinheiro. O acusado atacou Welvis com várias facadas, até vê-lo morto no chão. Só sossegou depois de ter certeza que tinha tirado a vida dele. Fugiu em seguida, mas foi encontrado este ano e aguarda julgamento, detido.
Intolerância
O Correio conversou com Andrezza Brito, psiquiatra forense e integrante da diretoria da Associação Psiquiátrica de Brasília (APBr). Para ela, a intolerância está relacionada a muitos casos de ações violentas. "Precisamos lembrar sobre os motivos que levam em conta o social, a cultura. Há pessoas que matam por diferenças culturais, políticas, modo de pensar. Cada caso tem que ser analisado individualmente, para determinar se é um problema de caráter ou de moral, por exemplo", explica.
Avaliar esse traço de personalidade é um trabalho meticuloso e cauteloso. Requer um olhar diferenciado para o indivíduo, uma análise do passado, da família e do círculo social, de acordo com Andrezza. Na análise da psiquiatra, é notória a drástica perda de empatia e sensibilidade em nossa sociedade. "As pessoas estão vivendo muito no superficial, que é muito fútil, onde os valores morais terminam ficando à margem. Temos, ainda, a questão das redes sociais, que, em determinadas situações, levam ao linchamento virtual e refletem na vida real. O outro não consegue se colocar no lugar de quem está sofrendo", detalha, acrescentado que é importante que a sociedade não relacione crimes violentos por motivos banais a doenças mentais.
Em situações de extremo estresse, a psiquiatra orienta: "Tem que tentar pensar que você tem vida, família e tem para onde voltar, e que aquilo (discussão) não significa nada na sua vida".
Três perguntas para
Raoni Parreira Maciel, promotor de Justiça e coordenador do Núcleo do Tribunal do Júri e Defesa da Vida do MPDFT
Em quais situações a qualificadora motivo fútil se aplica? E qual a análise do Ministério Público sobre essas situações no oferecimento da denúncia?
O motivo fútil é incluído em uma denúncia do Ministério Público quando há uma desproporção entre as razões que levaram o acusado a cometer o crime e a violência que foi praticada. Em termos claros, o motivo fútil é aquele muito pequeno, banal, que jamais poderia levar um cidadão a cometer uma atrocidade homicida, revelando no ato um especial desprezo pela vida humana.
Na sua experiência profissional e levando em consideração a análise caso a caso, pode-se dizer que há mais homicídios qualificados por motivos fúteis?
Com a especial redução no número de homicídios ocorrida nos últimos 10 anos no Distrito Federal, em especial a redução da criminalidade juvenil armada, que comumente foi chamada de "guerra entre gangues", a porcentagem dos homicídios fúteis passou a ser mais relevante, e chamou mais atenção. Não creio que exista um aumento no número desses crimes, comumente praticados dentro do contexto de consumo imoderado de bebida alcóolica.
O que pode explicar isso?
Há sim, um clima beligerante na sociedade. Embora sejam poucos os casos (em termos estatísticos), chamam atenção ocorrências recentes de homicídios e tentativas de homicídio, mesmo fora desse contexto mais corriqueiro, de consumo de bebidas alcoólicas. Temos visto estudiosos do comportamento humano apontando as dinâmicas das redes sociais, e a forma como os seus algoritmos premiam os discursos de ódio com relevância como um fato a ser observado nesse acirramento dos ânimos.