Nos últimos anos, diversos casos de discriminação contra pessoas LGBTQIA em estabelecimentos comerciais e órgãos públicos têm ganhado repercussão na sociedade. Isso tem provocado discussões entre autoridades e prestadores de serviço para a necessidade urgente de uma maior conscientização e rigor na aplicação das leis de proteção aos direitos dos consumidores com esse perfil. Embora haja avanços legais, o preconceito ainda persiste e precisa ser combatido com firmeza e conscientização, na opinião de especialistas da área do Direito ouvidos pelo Correio.
De acordo com o Código de Defesa do Consumidor (CDC), todos os clientes, independentemente do gênero com que se identifiquem, devem ser tratados com igualdade de direitos. Decisões judiciais recentes, em casos de conflitos provocados por desobediência a essa regra, reconhecem essa garantia. As sentenças têm imposto sanções aos infratores, como multas, cobranças de indenizações financeiras por danos morais e até aplicações de responsabilizações criminais aos acusados.
Uma mulher lésbica, que preferiu não ser identificada, contou ao Correio que sofreu preconceito em uma loja de bijuterias ao procurar um presente de aniversário para a mãe. O motivo: não aparentar ser feminina. "Eu estava no centro da cidade com a minha irmã procurando o presente para a minha mãe, e, como sabia que ela gostava de ganhar brincos, decidi passar nessa loja. Ao começar a me aproximar dos brincos com minha irmã, que é uma mulher mais feminina, uma atendente me notou. Percebi a cara de desdém que ela fez ao me olhar", lembrou.
"A atendente abriu um sorriso ao cumprimentar a minha irmã, praticamente ignorando a minha existência, mesmo sabendo que ela só estava me acompanhando e que não iria comprar nada. Todas as vezes que eu perguntava os preços, ela me ignorava explicitamente, e sugeria outros brincos para minha irmã. Quando decidi chamar a atenção dela dizendo que eu queria ser atendida também, ela respondeu: 'Nem percebi. Você me parece muito masculina para comprar essas coisas'. Nessa hora, eu me encolhi. Senti que era a pessoa menos aceita do mundo", completou a mulher de 21 anos.
Ela relatou que, após ouvir aquilo, saiu do estabelecimento. Segundo ela, o episódio a abalou muito. Contudo, atualmente, ser uma mulher sem feminilidade, para ela, é ir além da aparência. "Perdi a vergonha. Portar-me assim, como sou, é um ato político. Se aquilo (na loja) ocorresse comigo novamente, exigiria meus direitos. Definitivamente, acho importante que haja um pedido de desculpas formal e um treinamento de (respeito à) diversidade (em orientação sexual) aos funcionários (de estabelecimentos) para que coisas assim não aconteçam", avaliou.
Problemas do tipo não se restringem à iniciativa privada. Alex Morilha, um homem trans, disse ao Correio que, várias vezes, foi desrespeitado em órgãos públicos, e que sua pior experiência com transfobia teria ocorrido na Unidade Básica de Saúde (UBS) 2 do Guará II. Ele reclamou que, nesse centro médico, não é tratado pelo nome com o que se identifica. "Várias vezes, funcionários foram desrespeitosos no meu atendimento, especialmente na recepção. Por exemplo, classificam meu nome (atual) como 'nome social'. Dá pra notar quando é um erro sem intenção e quando é na maldade. E, quando reclamei, justificaram que tinham meu nome 'morto' (anterior) vinculado ao sistema", protestou.
Além disso, Morilha contou que não teve nenhum tipo de suporte das testemunhas presentes durante incidentes como esse, e que o preconceito o afeta emocionalmente. "As pessoas presentes na UBS, pacientes e outros funcionários, não fizeram nada além de assistir. Tenho alguns traumas bem fortes em relação a essa questão de nome 'morto'. Tive crise de ansiedade, no local, por conta do ocorrido, e fui repreendido com grosseria. Não tive suporte, até me falaram para 'parar de fazer show'. A única vez em que tive suporte foi de uma médica, que foi muito acolhedora e me ajudou a manter a calma", lembrou.
De acordo com manuais de conduta de órgãos governamentais, discriminações cometidas por servidores públicos podem levar os responsáveis a sofrer sanções administrativas e ações de improbidade administrativa.
Respeito
Sobre medidas adotadas por instituições públicas para garantir o respeito a pessoas LGBTQIA , o advogado especializado em direito do consumidor Mozar Carvalho esclareceu que o Estado, em suas diferentes esferas — municipal, estadual e federal — tem sido bem sucedido. "Os órgãos públicos podem implementar treinamentos de sensibilização e educação sobre diversidade. Também, estabelecer e divulgar políticas claras de não discriminação, criar canais de denúncia acessíveis e confidenciais, além de garantir a aplicação rigorosa de sanções administrativas contra atos discriminatórios", comentou.
Por sua vez, a advogada Ana Cecília Chaves de Azevedo ressaltou que os direitos dos consumidores LGBTQIA , ao utilizar serviços de saúde e educação, devem ser amplamente protegidos por normas constitucionais e infraconstitucionais, sendo assegurados tanto no setor público quanto no setor privado. "Existem mecanismos específicos para a denúncia e reparação de atos discriminatórios. Os profissionais de saúde devem ser capacitados para atender a população LGBTQIA de forma adequada e sem preconceitos, e as pessoas trans têm o direito de serem chamadas pelo nome (escolhido) em todos os serviços de saúde", avaliou.
De modo geral, os especialistas consultados defenderam que cada caso de preconceito, se comprovado, receba punições diferentes. Não pode, na opinião deles, haver generalizações. Para situações graves e reincidentes, a ação judicial pode ser mais eficaz para obter uma reparação completa e desestimular que o erro se repita. Eles consideraram que a orientação de especialistas em direito do consumidor e direitos humanos permite, a quem se considerar ofendido, verificar o que pode ser feito. No entanto, reconheceram que iniciar uma ação pelo Procon pode permitir soluções mais rápidas e menos custosas.
* Estagiária sob supervisão
de Manuel Martinez
O que fazer
Ana Cecília Chaves de Azevedo, advogada consumerista (especialista em direito do consumidor), explicou o que deve ser feito em casos de discriminação. "É crucial coletar todas as evidências possíveis sobre o incidente de discriminação. Isso inclui: testemunhos de pessoas presentes, gravações de áudio e vídeo, fotografias e qualquer outro meio que comprove a ação discriminatória. Anotar a data, hora e local do ocorrido, bem como os nomes dos envolvidos, como funcionários ou proprietários do estabelecimento, também é importante", esclareceu.
Ana Cecília destacou que levar a reclamação ao Instituto de Defesa do Consumidor (Procon) é importante. De acordo com ela, discriminação em estabelecimentos comerciais pode configurar uma infração às normas de defesa do consumidor. Além disso, a advogada recomendou que não se deve esquecer de fazer, em uma delegacia de polícia, o registro de Boletim de Ocorrência (BO). Esse documento é essencial por formalizar a insatisfação enfrentada, e pode ser usado em alguma ação judicial que venha a ser aberta pela pessoa em busca de algum tipo de reparação.
Como denunciar
» Procon
www.procon.sp.gov.br
» Defensoria Pública
www.dpu.def.br
» Comissão de Direitos Humanos
www.cdh.gov.br
» Organizações LGBTQIA
www.abglt.org.br
» Grupo Dignidade
www.grupodignidade.org.br
Fonte: Ana Cecília Chaves de Azevedo, advogada consumerista.
Lojas Renner
Cobrança quadruplicada
Camila Sato procurou a coluna para reclamar sobre um problema que teve ao realizar uma compra nas Lojas Renner. Em abril, ela adquiriu um produto numa das filiais da marca, em Brasília. Após repetidas tentativas de fazer o pagamento via aplicativo, usando cartão de crédito, algum problema técnico impedia a conclusão da aquisição. Ela só pôde finalizar o processo com a ajuda de uma vendedora no caixa.
No entanto, dias depois, quando a cliente verificou a fatura do cartão, percebeu que constavam quatro cobranças de R$ 219,88, parceladas em cinco vezes, cada uma. A central de atendimento aos consumidores da empresa prometeu estornar as três transações excedentes. Contudo, uma delas permaneceu em aberto. Camila então ligou novamente ao setor de atenção ao consumidor e foi orientada a ir até a loja onde fez a compra para que solicitasse, com ajuda de funcionários, providências para o cancelamento desse pagamento a mais junto à administração do cartão. Novamente no estabelecimento, após uma espera de duas horas, segundo ela, conversou com a gerente da unidade. Ela disse ter sido surpreendida com a informação de que o problema deveria ser resolvido exclusivamente pela central e que os empregados não teriam como auxiliá-la.
Mais uma vez, em um contato telefônico com o Serviço de Atendimento ao Consumidor da Renner que durou 2h e 40 minutos, durante os quais foi transferida para vários setores e atendentes, teria escutado que a empresa não era responsável pelo problema. Sem opções, ela contou que teve de arcar com o pagamento dos R$ 219,88, mais juros e encargos de R$ 176,00 devido ao atraso.
"Depois de diversas tentativas frustradas para resolver essa situação, pelo telefone e (presencialmente) na loja, estou considerando entrar com uma ação judicial se a questão não for solucionada rapidamente", disse.
Resposta da empresa
As Lojas Renner informaram que a solicitação da cliente foi atendida.
Comentário da consumidora
"A loja entrou em contato comigo dizendo que vai ajustar as mudanças e que posso pagar, neste mês, somente o que devo. Vamos ver se tudo vai ocorrer como prometido. Obrigada pela ajuda".
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