O Ministério Público do Trabalho (MPT) registrou, de janeiro a junho de 2024, 19 denúncias de trabalho infantil no Distrito Federal. No ano passado, foram 50 ocorrências — o que equivale, praticamente, a uma delação por semana. O problema, porém, é pior do que parece. Basta uma volta pelas principais vias do Plano Piloto para flagrar crianças e adolescentes sozinhos, descalços e expostos ao frio, ao sol, ou à chuva, comercializando produtos nos semáforos de forma irregular. Segundo Marcela Passamani, secretária de Estado de Justiça e Cidadania do DF, o maior gargalo para combater o problema é a subnotificação.
Os dados são escassos. O último estudo acerca do assunto foi realizado pelo Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF), a partir do suplemento anual de trabalho infantil da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad-C), para o período entre 2016 e 2019, e publicado em 2021. Somente em 2019, 3% — 16.158 das crianças e adolescentes do DF estavam em trabalho infantil. Outro dado preocupante é que, dessas, 68,3% eram negros. Ao Correio, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informou que a próxima divulgação da Pnad-C sobre o tema está prevista para outubro deste ano.
A advogada trabalhista Tayane Dalazen explica que, no Brasil, são consideradas como trabalho infantil atividades econômicas, inclusive de sobrevivência, remuneradas ou não, praticadas por crianças e adolescentes com menos de 16 anos, salvo na condição de menor aprendiz, permitido pela legislação a partir dos 14 anos. "As atividades que são desempenhadas pelo aprendiz vão auxiliar na sua formação. Não basta ser uma atividade qualquer, como a de um empacotador ou uma criança que trabalha em uma feira. A aprendizagem requer uma atividade que vai trazer uma profissionalização e que, de fato, incluirá esse adolescente no mercado de trabalho, mediante condições estabelecidas pela lei, como carga horária, comprovação escolar e remuneração conforme as horas trabalhadas", detalha.
Quando se trata da exposição da criança e do adolescente ao trabalho irregular, há quem pense imediatamente nas formas mais dramáticas de exploração, naquelas em que a criança é colocada na função de manusear ferramentas pesadas, por exemplo. No entanto, há diversos formatos que podem, muitas vezes, passar despercebidos. Erci Ribeiro, especialista em política social, explica que prestação de serviço, atuação em feiras livres, funções que ocorrem na rua, como venda de mercadorias em semáforos e engraxar calçados também configuram trabalho infantil. "É comum observarmos crianças ou pré-adolescentes no setor do comércio, que fazem parte do grupo familiar e ocupam uma função de trabalhador, uma máscara em torno da justificativa de que está ajudando a família. Isso também ocorre nas feiras livres, quando feirantes fazem o uso da mão de obra infantil para auxiliar nas relações de compra e venda", analisa Erci.
Raízes do problema
A especialista em política social aponta que há vários elementos relacionados ao aumento dessa distorção. A condição de vulnerabilidade e o abandono paterno, que resulta em monoparentalidade e sobrecarrega a mãe solo, são pontos que influenciam diretamente.
Erci pondera que há uma reprodução no imaginário coletivo de que o trabalho é alternativa para crianças e adolescente periféricos. Enfatiza que há, ainda, recorte racial, no qual prevalecem crianças e adolescentes negros expostas ao trabalho irregular, contribuindo para o abandono e a evasão escolar.
No Brasil, não são incomuns comentários que glorificam o trabalho infantil: "É melhor trabalhar do que ficar perambulando na rua"; "Antes trabalhando do que roubando"; "Melhor trabalhar do que passar fome". Afirmações desse tipo, porém, não passam de mitos que contribuem para que o combate à causa seja dificultado, de acordo com as fontes ouvidas pelo Correio.
Questão cultural
A advogada Tayane Dalazen reitera que, no país, há uma cultura de que o trabalho prematuro é dignificante, o que favorece a precarização da mão de obra. "É preciso uma revolução cultural, com uma mudança radical desses paradigmas e superação desses preconceitos, porque nós não podemos mais aceitar argumentos equivocados e ultrapassados em relação à criança e ao trabalho. Não é melhor a criança trabalhar do que ficar na rua. Não, o trabalho não forma o caráter da criança e ela não pode trabalhar para sua própria subsistência ou da família", afirma Tayane.
Tayane lembra que o papel desempenhado pela sociedade no combate à irregularidade é crucial, porque a exploração não pode ser estimulada pela população. "Ao contrário do que muitos pensam, o ato de dar esmola, de comprar balinhas e qualquer outros objetos que sejam oferecidos fará com que a criança permaneça no estado de trabalho infantil e exploração. Além de denunciar, nós, da população, podemos contribuir por intermédio de instituições do terceiro setor voltadas ao atendimento de crianças em estado de vulnerabilidade social. Por meio do apoio a essas instituições, nós ajudamos as crianças a terem seus direitos resguardados", ensina.
Fiscalização
Os especialistas também apontam a necessidade de rigor na fiscalização. Após o recebimento da denúncia, o MPT instaura uma Notícia de Fato (NF) que, após encaminhada a um procurador, dá início ao processo de averiguação para abertura do inquérito civil, com o intuito de confirmar se há indícios de irregularidades. Depois das diligências, o órgão avalia se cabe o ajuizamento de uma ação civil pública ou um Termo de Ajuste de Conduta (TAC), mecanismo utilizado pelo MPT para solucionar irregularidades de forma mais rápida.
No âmbito do governo local, a secretária de Estado de Justiça, Marcela Passamani, afirma que estimular a denúncia é o principal ponto na hora de combater a violação de direitos, especialmente no que diz respeito às crianças e adolescentes. "A gente só consegue aumentar o número de denúncias criando espaços de debate, discussões e de conscientização da população para a necessidade de intervirmos nas situações em que estão nitidamente violando o direito de crianças e adolescentes, quando a gente faz abordagens temáticas, espaços de diálogo, entrevistas, acesso à mídia, a gente está convidando a sociedade para contribuir", comenta.
Marcela Passamani ressalta que, no DF, há um canal exclusivo (125) para denunciar violências sofridas por crianças e adolescentes. Sobre o número de denúncias registradas, a secretária completa que, na verdade, quando os agentes da rede de proteção veem os números aumentando, não interpretam, necessariamente, que as violações aumentaram, mas que a subnotificação diminuiu. "A gente trabalha para que não haja nenhum tipo de violação de direitos, mas, quando percebemos o número aumentando, entendemos que o nosso apelo, o nosso trabalho, está chegando às pessoas e fazendo com que elas denunciem mais", analisa.
Para além da indignação, a secretária reforça que a denúncia é imprescindível, uma vez que a abordagem se dá a partir do registro formal da irregularidade. "O Conselho Tutelar é avisado, para que possa abordar a família e iniciar um acompanhamento e retomar a criança à escola", conclui.
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