A lei nº 7.548/24, que proíbe a veiculação, transmissão e compartilhamento de cenas de violência contra a mulher em todo o DF, vem provocando debates entre especialistas, instituições e organizações não governamentais. Sancionada pelo govenador Ibaneis Rocha (MDB) e publicada no Diário Oficial do Distrito Federal (DODF) nesta semana, a lei, segundo o autor, deputado distrital Pastor Daniel de Castro (PP), tem a intenção de proteger a integridade e a dignidade das vítimas, evitando a revitimização e a exposição indevida.
De acordo com o texto da nova legislação, é vedada a disseminação de qualquer conteúdo que contenha cenas de violência contra a mulher em formato de imagens, vídeos ou áudios. A medida destaca que as cenas são aquelas que mostram agressões físicas, verbais, psicológicas, sexuais ou qualquer outra forma de violência contra a mulher, tanto do agressor quanto da reação da vítima. A abrangência da proibição é extensa, incluindo todos os suportes físicos e virtuais, como televisão, rádio, websites, redes sociais, fóruns de discussão e aplicativos de mensagens.
De acordo com o distrital Pastor Daniel de Castro, a lei é essencial para preservar a dignidade das mulheres e evitar a espetacularização de casos de violência. “O que nos motivou a redigir esse projeto foi proteger a vítima que, muitas vezes, é agredida tanto com palavras quanto com ações, por meio de violência física, e que acaba sendo agredida novamente quando vê seu vídeo e sua identidade expostos na mídia”, destaca o distrital.
A sanção da lei gerou reações em várias frentes. Para a juíza do Tribunal de Justiça do Distrito Federal de Territórios (TJDFT) Rejane Jungbluth Suxberger, apesar de a nova legislação ter como objetivo proteger a dignidade e a integridade das vítimas, há alguns pontos negativos e desafios associados a ela. “A implementação e fiscalização da lei, por exemplo, podem ser desafiadoras. Determinar o que constitui uma ‘cena de violência’ e monitorar o vasto fluxo de informações nas redes sociais e outras plataformas digitais requer recursos e estratégias robustas”, observa.
Equilíbrio
A juíza considera “louvável” a intenção da lei de proteger as vítimas, mas ressalta que “é crucial equilibrar a proteção da dignidade e da integridade das vítimas com a necessidade de liberdade de expressão, informação e conscientização sobre a violência de gênero”. Opinião parecida tem a especialista em direito da mulher e de gênero, a advogada Cristina Tubino.
Para a especialista, é preciso tomar muito cuidado com legislações que afetam diretamente a liberdade da imprensa de informar a população sobre fatos relevantes. “Especialmente quando a proibição de divulgação de fatos e notícias possam dar a equivocada impressão de que determinados crimes não acontecem, como no caso da violência doméstica e familiar contra a mulher”, alerta.
Reação
Presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Samira de Castro se mostra preocupada com a lei. “A princípio, esperamos que ela não se torne um mecanismo que sirva aos agressores. Isso porque, hoje, as violências contra nós, mulheres, são filmadas pelas vítimas como forma de denunciar publicamente tais situações”, comenta. “Claro que a veiculação dessas imagens tem de obedecer aos princípios éticos do jornalismo, mas em se tratando de agressores, a divulgação é uma forma de alerta público para outras mulheres e para as autoridades competentes”, avalia Samira.
Marcelo Rech, presidente-executivo da Associação Nacional de Jornais (ANJ), diz que a entidade defende a apuração e a divulgação ética e responsável dos conteúdos, e nunca a sua proibição, porque o efeito acaba sendo o contrário. “A ANJ entende que a censura, portanto, além de inconstitucional, jamais pode ser considerada o caminho para se combater um mal ou um crime”, destaca. “Pelo contrário, ao retirar dos olhos públicos a violência, se está escondendo da sociedade um crime que precisa ser enfrentado e banido da nossa convivência”, observa Rech.
Silvio Queiroz, que faz parte da direção do Sindicato dos Jornalistas do DF, afirma que a entidade vê com preocupação a criação da lei. “Isso por causa do risco de que ela possa resultar em algum tipo de censura ou de cerceamento ao direito de informação. Além disso, o texto da lei não esclarece o limite entre o que é preservar a imagem da mulher que é vítima de violência de gênero e o que é preservar a imagem do agressor”, destaca. “Nos empenhamos ao máximo em militar pela preservação da imagem da mulher que foi vítima de agressão. O jornalismo é uma ferramenta para combater essa violência e não para banalizar ou explorar como espetáculo”, ressalta Queiroz.
Segurança
A Conselheira da OAB-DF e advogada especialista em violência doméstica Andréia Limeira Waihrich é a favor da lei. “É um avanço para vítimas e familiares que sofreram ou sofrem violência doméstica e familiar contra a mulher. A lei considera a dignidade da pessoa humana, antes esquecida, nas políticas públicas adotadas nos casos de violência”, destaca. “A inovação do dispositivo legal assegurará às vítimas e aos seus familiares segurança física e emocional”, avalia a advogada.
Promotora de Justiça e integrante da Comissão de Prevenção e Combate ao Feminicídio do MPDFT, Gabriela Gonzales considera positiva a criação de uma legislação como essa. “Ela visa proteger a memória das vítimas e familiares, nos casos de feminicídios, e resguardar a intimidade das vítimas nas demais violências”, opina. “É importante ressaltar que a lei não censura a imprensa, apenas proíbe a veiculação de cenas que registrem a ação dos agressores ou a reação das vítimas, no intuito de resguardar a intimidade da vítima”, frisa a promotora. “Nesse sentido, a própria Lei Maria da Penha (artigo 8, inciso III) prevê que a mídia deve atuar de forma respeitosa, observando valores éticos e sociais de forma a coibir os papéis estereotipados”, comenta Gabriela.
Gestora e coordenadora do programa Dona de Mim, do Instituto Umanizzare, Leila Brant Assaf acredita que a lei trará bons impactos. “Quando essas cenas são divulgadas, estamos expondo a mulher, que está em uma situação sobre a qual ela tem muita dificuldade de falar. Por isso, acaba tendo uma espécie de revitimização”, argumenta. “Enquanto estamos querendo expor o agressor, a gente também revitimiza e gera mais traumas às mulheres que são vítimas de violência de gênero. No nosso instituto, por exemplo, recebemos mulheres que apareceram em matérias de jornais ou tevê e elas se sentiram extremamente invadidas com isso”, acrescenta Leila.
Para o pesquisador vinculado ao Grupo Candango de Criminologia (GCCrim/FD) da Universidade de Brasília (UnB) Welliton Caixeta Maciel, espera-se, com a lei, inibir a banalização e disseminação desse tipo de comportamento no DF. “Em termos das representações individuais e coletivas, medidas como esta poderão ter forte impacto, uma vez que o poder público dá mais um sinal de tolerância zero a violência doméstica contra a mulher, tanto às práticas quanto aos estímulos, em diversos aspectos”, avalia.
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