Maria Crateús, 64 anos, João Freire de Sousa, 57, Francisco Ferreira da Silva, 71, Maria Eliete Gomes da Silva, 57, e Cláudia Maria Moreira, 49, pegaram o mesmo ônibus, em cidades diferentes do Maranhão, rumo a Brasília. Em comum, o desejo de chegar à capital gastando pouco e de forma rápida. Daí a opção por uma empresa que atuava há 30 anos no mercado, e se dizia regular. Mas os cinco nunca chegaram ao destino final. Tiveram as vidas interrompidas por um acidente brutal na BR-070, perto de Taguatinga, em 21 de outubro do ano passado. As investigações concluíram que o veículo não tinha licença, estava com uma série de problemas técnicos e jamais passou por vistoria de órgãos oficiais. O Correio começa hoje a série Piratas das estradas, que mostra a rotina de ilegalidades e descaso com a segurança dos viajantes nos transportes clandestinos.
O acidente na BR-070 escancarou um submundo que nem sempre teve a atenção devida das autoridades. De um lado, vítimas que tiveram suas vidas ceifadas; do outro, famílias destruídas. Os parentes das vítimas nunca receberam qualquer tipo de indenização e assistência, nem mesmo atenção por parte dos donos da empresa. Pelo contrário, foram surpreendidos com a notícia da liberdade concedida pela Justiça aos motoristas, que também são donos da companhia Viagens Íris, Alexandre Henriques Camelo e Felipe Alexandre Gonçalves (pai e filho). Os dois respondem por cinco homicídios dolosos e estão soltos.
A Viagens Íris era uma empresa com clientela leal, que costumava embarcar com frequência, sobretudo para o Nordeste. Na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), a empresa é cadastrada para funcionar por fretamento, sem a cobrança individual de passagens. A modalidade se enquadra em excursões destinadas a grupos para uma cidade específica. A companhia não poderia funcionar como transporte interestadual, com venda de bilhetes.
Por décadas, as falhas passaram despercebidas entre os passageiros, a começar pelo valor das passagens. Atraídos pelo baixo custo, o gasto era metade do transporte regular, com embarque em rodoviárias. A Íris oferecia bilhetes por R$ 350 para Barra do Corda, no Maranhão, por exemplo, enquanto as empresas cobram acima de R$ 750. Depois do acidente, a Íris suspendeu as atividades. No ponto comercial onde ficava, em Ceilândia, passou a funcionar outra agência de turismo e viagem.
Blitz
Na direção do ônibus da Íris estava Felipe Alexandre, filho de Alexandre Henriques. O coletivo saiu de Caxias (MA) e fez várias paradas para a entrada de passageiros. Aparentemente, a viagem seguia normalmente, segundo depoimento prestado por um motorista reserva, contratado informalmente para uma eventual necessidade.
No fim da tarde de 21 de outubro, o veículo foi parado em um posto da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e, na abordagem, os policiais constataram irregularidades e informaram a Felipe que o ônibus seria escoltado por uma viatura da ANTT até a Rodoviária de Taguatinga para o transbordo dos passageiros. Felipe contou sobre a situação ao pai por ligação e, minutos depois, Alexandre chegou em um carro prata e interrompeu a escolta. Aos fiscais, ele disse que não levaria o ônibus a nenhum terminal, pois o veículo era dele.
As investigações da 17ª Delegacia de Polícia (Taguatinga Norte) mostram que Alexandre assumiu a direção do coletivo e acelerou em fuga, enquanto Felipe ficou no carro. As marcas de frenagem no asfalto indicam que o motorista estava a 110km/h quando perdeu o controle da direção e entrou em processo de derrapagem, colidindo contra uma Hilux e capotando em seguida. À polícia, o homem negou ter fugido e justificou o acidente por causa da batida contra a caminhonete.
O Ministério Público do DF denunciou Alexandre e Felipe por cinco homicídios dolosos e 20 tentativas de homicídio. A Justiça aceitou e os dois tornaram-se réus e tiveram as prisões preventivas decretadas. Em 27 de maio deste ano, foi concedido o alvará de soltura a ambos. O Correio tentou contato com os acusados, que preferiram não se manifestar sobre os fatos. A defesa também não respondeu aos questionamentos.
Adeus inesperado
"Auriane, está tudo tranquilo aqui. Só o ônibus que vai levar um BO. A polícia está escoltando para levar a gente para a rodoviária. Lá que vamos desembarcar, mas está tudo tranquilo, viu?." Essa foi a última mensagem de Maria Crateús, 64 anos, enviada a Auriane Fernandes, 41, uma das filhas. Menos de 10 minutos depois do áudio, o ônibus capotou e a idosa morreu.
Maria saiu de Coelho Neto (MA), cidade onde morava, com destino a Brasília para visitar os filhos. A preferência por viajar de ônibus era pela possibilidade de trazer presentes e alimentos para os familiares. "Eu falava para ela vir de avião, mas ela se sentia mais segura vindo de ônibus. Sempre foram viagens tranquilas, mas minha mãe nunca percebeu algo de errado. Se tivesse percebido, com certeza avisaria. Ela não gostava de velocidade e ultrapassagem", contou Auriane.
A aposentada considerava Brasília como uma segunda casa. Na capital, chegava a ficar sete meses na residência de parentes e adorava conhecer os pontos turísticos da cidade. No dia em que saiu do Maranhão, ela mandou mensagens frequentes à filha avisando cada ponto de parada. Em todos os áudios, demonstrava alegria e o anseio para rever os familiares. Mas, em questão de segundos, tudo se tornou um pesadelo.
Depois de horas sem dar notícias, Auriane estranhou a demora da chegada da mãe. Enviou mensagens, mas ficou sem resposta. "Eu estava em outra cidade, quando meu sobrinho me deu a notícia por telefone. Eu vim às pressas e um dos meus irmãos já tinha ido ao local do acidente." Uma força-tarefa começou para localizar Maria: os familiares se dividiram e percorreram todos os hospitais de Brasília em busca da aposentada. "No fim, ela estava debaixo do ônibus", disse Auriane.
Uma perda irreparável, pois Maria estava na melhor fase da vida, segundo a filha. Amava tirar fotos, era vaidosa e vivia como se não houvesse amanhã. "Como é difícil perder alguém que amamos. Ela era tudo para mim. A ganância do homem a levou e, hoje, tudo o que pedimos é Justiça, porque ela não volta mais", desabafou.
Maria Eliete, 57, vinha para Brasília pelo menos duas vezes ao ano. Na bagagem, algo muito especial: o enxoval da neta Maria Eduarda, hoje com 5 meses. Mas ela nem sequer conheceu a bebê. A gerente comercial Sinária Gomes, 30, filha da autônoma, não consegue acreditar na partida da mãe. "Ela estava muito ansiosa para trazer as coisas da Maria. Tudo que comprava mandava fotos e só falava na bebê."
Sinária conhecia a empresa Íris, mas nunca desconfiou das irregularidades. Maria também não sabia dos erros por parte da companhia e vinha para o DF somente de ônibus. A gerente conversou com a mãe um dia antes do acidente, quando Maria estava a caminho da agência de viagens. Durante o trajeto, ficou sem acesso ao celular. "Uma moça que viu minha mãe contou que ela pediu um telefone emprestado dentro do ônibus, provavelmente para avisar que tinha algo errado, mas na hora que ela pegou esse celular, o ônibus capotou", contou.
Maria foi socorrida e levada ao Hospital Regional de Taguatinga (HRT), onde sofreu uma parada cardíaca e morreu. Sinária clama por Justiça e teme tragédias semelhantes provocadas por outras empresas irregulares. "Ela foi arrancada de nós. Como assim? Estava a caminho, bem e com saúde. Quando olho as fotos, escuto os áudios dela falando da Maria Eduarda, não consigo acreditar."
O empresário Jeferson Alencar, 33, sofre com a perda do pai, Francisco Ferreira. Aos 71 anos, o idoso mantinha uma rotina de trabalho árdua no ramo da construção civil. Francisco voltava da cidade de Arame (MA), onde havia ido visitar o irmão doente. A viagem pela empresa Íris não estava programada, pois ele tinha comprado a passagem de uma outra companhia, mas devido a problemas no ônibus, precisou embarcar na irregular.
O idoso não via a hora de chegar em casa e estava a poucos quilômetros de lá quando o acidente ocorreu. "Meu pai sempre foi trabalhador. Somos oito irmãos e, mesmo sem escolaridade, ele trouxe a família do Nordeste para Brasília para construir uma vida melhor. E conseguiu. Todos os dias, quando volto para a casa, passo pelo local do acidente e aquela cena nunca vai sair da memória", lamentou.
Sobrevivi para contar
Adriana de Oliveira, 41, é uma das sobreviventes do capotamento do ônibus da Íris. Hoje, traumatizada e com problemas de saúde, ela conta que foi até um município do Maranhão fazer uma cirurgia na tireoide, no começo de outubro de 2023. Após 15 dias de repouso, comprou a passagem por R$ 250 para retornar ao DF, mas não esperava que a viagem fosse custar muito mais caro.
A lavradora relembra todo o trajeto do ônibus e diz ter percebido o momento em que o motorista acelerou o veículo para fugir da escolta. "Fiquei em pé, olhei para trás e vi que ele estava muito rápido. Só senti que iria morrer." Adriana sofreu um forte impacto no peito, que abriu os pontos da cirurgia recente. "Foi minha primeira e última vez. Nunca mais ando de ônibus. Preciso ir ao Maranhão buscar os laudos para dar entrada na aposentadoria, mas como vou? Se nem para buscar meus filhos na escola eu vou de ônibus?".
Saiba Mais
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br