Urbanismo /

Mudanças na escala bucólica de Brasília entram em debate; entenda

Os espaços vazios e a preservação da natureza fazem parte do conjunto urbanístico de Brasília, uma cidade-parque. Seduh destaca que quaisquer mudanças no projeto inicial passarão por avaliação prévia do Conplan e do Iphan

O fato de ser conhecida como cidade-parque não é obra do acaso. A escala bucólica da cidade, que se constitui dos gramados, passeios, bosques e jardins da capital do país que permeiam e envolvem as superquadras, as entrequadras, os diversos setores e os conjuntos de casaS e comércios locais, e a cidade inteira, imprime essa qualidade à cidade. 

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU-UnB), Frederico Flósculo destaca que a escala bucólica de Brasília busca ressaltar algo que é raro no urbanismo brasileiro: a presença da natureza. Flósculo observa que o Plano Piloto vai na direção contrária das outras grandes cidades do país, que costumam descartar áreas públicas e arborizadas. 

"As áreas verdes são importantes porque são uma moldura da obra de Lucio Costa", diz Flósculo, que enumera alguns fatores ambientais importantes da escala bucólica de Brasília: permeabilidade do solo, integridade dos mananciais, regulação do clima, proteção do solo e preservação da vida nessas áreas. 

Silêncio verde 

Preservar a escala bucólica, segundo Benny Schvarsberg, também professor da FAU-UnB, significa o respeito à concepção do projeto original de Brasília. "Não são sobras. Há uma intencionalidade na existência de muitos espaços livres, na cidade. O próprio Lucio Costa chamava isso de 'silêncio verde'", conta o arquiteto. A permeabilidade do solo dessas áreas livres auxilia no sistema de drenagem natural da cidade e alimenta os lençóis freáticos, de acordo com Benny. "Também dá a possibilidade de a população usufruir desses espaços em momentos de lazer. Essas áreas tornam a cidade mais humana e saudável", acrescenta.

Lotes valiosos

Para Schvarsberg, "permissividade" é o termo que melhor descreve o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB) aprovado pela Câmara Legislativa, semana passada. Ele destaca que existe uma imprecisão em relação sobre o possível parcelamento de uma área no Setor de Clubes Sul. "Admitem-se inúmeras possibilidades, inclusive a residencial. E são lotes muito valiosos. Abre margem para elaboração e aprovação de projetos a bel-prazer das pressões do mercado imobiliário", teme. 

O professor menciona também a emenda que passa áreas livres, registradas até 1979, para o domínio da Terracap. "O patrimônio público pode passar a ser particular por meio de decreto, sem apreciação dos deputados distritais", adverte. 

Juliano Carvalho, membro do núcleo do DF do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), entidade ligada à Unesco, explica que as áreas verdes ao redor da cidade permitem a "visualização e percepção do Plano Piloto", além de serem fundamentais para a qualidade de vida dos moradores. Segundo ele, o Plano de Preservação, aprovado pela CLDF, fere a escala bucólica de algumas maneiras. A primeira citada por ele é a criação e modificação de lotes isolados nas proximidades do Lago Paranoá, o que aumenta a ocupação e impacta as áreas verdes da região. 

"O plano também prevê a aplicação de estudos para avaliar a ampliação da ocupação habitacional nas proximidades do lago, o que cria pressão para a construção de novos condomínios, que têm taxa de ocupação muito alta, dificultam o acesso ao lago e diminuem a área verde", explica Carvalho. 

Alguns exemplos de áreas que podem ter o loteamento autorizado por decreto do governador são as entrequadras e as áreas verdes que ficam entre os lotes dos setores de clubes. 

"A escala bucólica garante qualidade paisagística para a fruição dos moradores; garante a forma urbana isolada pelo verde, favorecendo a visualização e percepção do Plano Piloto; e proporciona qualidade ambiental (acesso a áreas verdes)", explica Juliano. 

Seduh 

Questionada sobre as falas dos especialistas consultados pelo Correio, a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (Seduh) respondeu, em nota, que não há no texto do PPCUB previsão de loteamento nas proximidades do Lago Paranoá, estando garantida a manifestação do acesso ao espelho d'água.

Sobre a emenda que passa para Terracap todas as áreas livres parceladas até 1979, a pasta diz que todos os acréscimos ao texto da proposta serão tecnicamente avaliados, após o recebimento da redação final pelo Executivo. A nota destaca que em qualquer caso de parcelamento ou alteração de parcelamento registrado, o processo deverá seguir todo o rito estabelecido, inclusive com avaliação prévia do Conselho de Planejamento Territorial e Urbano do Distrito Federal (Conplan) e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Acerca das mudanças na área livre no fim da Asa Sul, a Secretaria de Urbanismo esclarece que se trata de um espaço que abrange o Parque de Aeromodelismo e Parque dos Pássaros. De acordo com o órgão, não há previsão para novas edificações ou ocupações na área do aeromodelismo, apenas regularização do existente.

Quanto ao Parque dos Pássaros, a previsão é de que seja implantada a proposta vencedora de concurso realizado em 2005, que prevê todo o projeto de paisagismo do parque, com possibilidade de atividades de apoio, como lanchonetes, estruturas de apoio ao usuário, como banheiros, sem descaracterização da grande área verde ou qualquer outro dispositivo que venha a ferir a vocação daquele setor como componente da escala bucólica pensada por Lucio Costa, promovendo uma requalificação do espaço para uso da população.

 Audiência pública

Audiência pública da Comissão de Meio Ambiente do Senado Federal vai discutir hoje, às 10h, as mudanças propostas do PPCUB nas regras sobre o que pode ser feito na área tombada da capital. O encontro reunirá especialistas e representantes do governo do Distrito Federal.

Requerida pela senadora Leila Barros (PDT-DF), a audiência vai debater as implicações do PPCUB na preservação das características arquitetônicas e paisagísticas de Brasília. Entre as propostas controversas do plano, segundo a senadora, está a criação de um camping na área verde do fim da Asa Sul, próximo ao Aeroporto Internacional de Brasília, e a permissão para construção de hotéis com mais de 12 andares na área central de Brasília, ameaçando a paisagem urbana planejada por Lucio Costa. 

"O conjunto urbanístico de Brasília é um patrimônio da humanidade, planejado para ter amplas áreas verdes e prédios baixos. O PPCUB parece ameaçar essa característica essencial da nossa cidade. Brasília não está à venda. Se áreas tombadas forem impactadas pelo PPCUB, acionaremos os órgãos de fiscalização e controle para questionar o retrocesso que compromete a qualidade de vida dos brasilienses", declara Leila. O encontro será na Ala Senador Nilo Coelho, Plenário nº 2. 

Mais Lidas