Especialistas avaliam como arriscado e permissivo o projeto aprovado pela Câmara Legislativa (CLDF), que autoriza a instalação de painéis de publicidade em áreas tombadas de Brasília e em outras regiões do Plano Piloto. Teme-se que a cidade perca o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, concedido pela Unesco. Poluição visual e risco de acidentes no trânsito, devido às distrações a que estarão sujeitos os motoristas, também são preocupações.
De autoria dos deputados Wellington Luiz (MDB) e Jorge Vianna (PSD), as duas proposições — Projeto de Lei nº 985/2024, em tramitação conjunta com o PL nº 1.066/2024 — alteram o Plano Diretor de Publicidade do Plano Piloto, Cruzeiro, Candangolândia e lagos Sul e Norte. A aprovação ocorreu na última terça-feira (11/6) e, se sancionadas pelo governador Ibaneis Rocha (MDB), as novas regras podem regularizar publicidades que estão em situação irregular atualmente.
O texto de Jorge Viana estabelece que o Plano de Ocupação dos meios de propaganda deverá respeitar o espaçamento mínimo de 100 metros, quando localizados na mesma margem da rodovia. No caso da Estrada Parque Aeroporto (EPAR), a distância entre os meios deverá ser de 125 metros.
Salvo nas fachadas voltadas para o Eixo Monumental, o texto de Wellington Luiz admite a instalação de meios de propaganda na área central de Brasília, no Setor de Diversões Norte (SDN) e no Setor de Diversões Sul (SDS), especificamente, nos setores Cultural Norte e Sul, Hoteleiro Norte e Sul e na comercial Norte e Sul (veja quadro). Esse projeto é o que causa maior preocupação dos especialistas.
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E o tombamento?
Para a arquiteta e urbanista Angelina Quaglia, normas como as aprovadas devem ser estabelecidas a partir de estudos e análises extensos. "Caso contrário, é preocupante o processo que permite propagandas em lugares que, sim, vão ferir o tombamento, em especial no que diz respeito às questões de permeabilidade visual, isto é, a permissão de visão de toda uma área, sem barreiras", disse a especialista.
Angelina, que é vice-presidente do Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural do DF (Condepac-DF) e membro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos-DF), acrescenta que, assim como o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCub), que também está sendo discutido pela CLDF, o projeto de lei que dispõe sobre as regras de publicidade no Plano Piloto também deve respeitar as diretrizes da Unesco e as análises do Icomos e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
"É preciso deixar de ter medo de estudar aquilo que nos torna uma cidade única, e aplicar normas de forma correta, sem responder à especulação financeira e imobiliária", destacou. Com relação à instalação de painéis nas empenas cegas (paredes sem janelas e sem ventilação) de edifícios da região central da capital, a arquiteta demonstrou preocupação com a poluição visual da cidade. "Imagine se vira moda e, em todas as empenas cegas dos edifícios, colocam propagandas?", questionou.
O risco, segundo Angelina, é de que Brasília perca o título de patrimônio mundial. "Se continuarmos a desconsiderar uma série de atributos e concepções que nos fizeram virar patrimônio mundial, sem dúvida perderemos. O tombamento, ou a inscrição na Unesco não congela a cidade, mas é preciso seguir algumas regras. Não existe mundo sem regras", afirmou.
As regras às quais a urbanista se refere são os atributos que levaram a capital da República a se tornar patrimônio da humanidade em 1987. "Esses atributos não podem ser modificados. Nosso tombamento foi feito em cima de escalas. Isso é uma coisa inédita no mundo todo, assim como só existe uma cidade como Brasília. É a única cidade modernista que existe", destacou a especialista.
Luiz Eduardo Sarmento, arquiteto, urbanista e presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB/DF), ressaltou a importância de preservar a arquitetura modernista de Brasília, reconhecida internacionalmente. "Banners e painéis de LED, além de esconderem nossa arquitetura, diminuem a qualidade espacial desses prédios. Imagina que você, usuário desse prédio, tem uma janela e, de repente, essa fachada de vidro pode se tornar um elemento de publicidade? Aquela luz, a ventilação, o sol e a vista que você tinha vai ser obstruída por um grande elemento de publicidade", exemplificou.
Deve-se pensar, também, no impacto interno que essas mudanças podem gerar na qualidade de vida dos usuários e trabalhadores que passam horas dentro das edificações. "É muito importante para Brasília que essas fachadas sejam abertas e arejadas, permitindo uma visão da cidade, ainda mais na área central da cidade, onde há visuais belíssimos. Além disso, estamos em um momento de aquecimento, no qual precisamos de maior ventilação. Se obstruídas, a qualidade interna dos edifícios diminui", explicou o especialista.
Poluição visual
Para Benny Schvarsberg, professor de urbanismo e planejamento urbano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade de Brasília (UnB), os painéis, sobretudo os de grande dimensões em fachadas e empenas prediais, são poluidores visuais, paisagísticos e ambientais. "Imagine se Roma, Paris, Ouro Preto, Pirenópolis e outras cidades que preservam seu patrimônio histórico e cultural admitissem a instalação de painéis de propaganda comercial poluindo a paisagem urbana?", contestou.
"Aqueles dinâmicos com filmes e cenas, além da poluição, potencialmente podem gerar desastres e atropelamentos ao distrair motoristas, pedestres e ciclistas", completou. O professor reforçou que a única situação admissível é aquela prevista pelo próprio Lucio Costa, que, no item 10 do relatório do Plano Piloto, estabeleceu a instalação de "painéis luminosos de reclame", presentes na fachada do Shopping Conjunto Nacional e do Conic.
Na contramão de cidades que visam diminuir a poluição visual, projetando espaços mais confortáveis e harmônicos, o DF tem ampliado o problema, mediante projetos que não foram debatidos com a sociedade. É o que ressalta Luiz Eduardo Sarmento.
"Toda poluição precisa ser combatida. Nos preocupa, principalmente, a possibilidade de haver um efeito dominó, pois se isso está acontecendo na área central de Brasília, pense nos outros espaços urbanos da metrópole, onde o Estado está mais ausente e investe menos recursos", destacou Sarmento.
Falta de debate
O projeto de lei modifica o Plano Diretor de Publicidade do Plano Piloto, Cruzeiro, Candangolândia e Lagos Sul e Norte, ação que, segundo Sarmento, deve ser feita com participação dos mais diversos agentes envolvidos com o território. "Uma mudança de lei, aprovada dessa forma, e na capital do país, passa por cima da participação da sociedade, o que é reprovável", lamentou.
Além disso, o presidente do IAB/DF lembrou que qualquer transformação urbana precisa de simulações, nas quais são feitas perspectivas, análises e previstos os impactos. "Se isso foi desenvolvido, eu não sei. Mas não foi apresentado. Estamos falando de cidade, de espaço urbano, que é, inclusive, patrimônio mundial, de edifícios, de arquitetura", explicou.
Leandro Grass, presidente do Iphan, disse à reportagem que teve conhecimento das novas regras pela imprensa. "O Iphan não recebeu notificação nem foi consultado acerca do assunto. A expectativa é que o decreto federal seja respeitado".
Risco ao trânsito
A desatenção no trânsito, gerada pelos painéis, é outra preocupação dos especialistas. Paulo César Marques, professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da UnB e doutor em estudos de transportes, destacou que tais publicidades tiram a atenção da tarefa primordial do motorista, que é focar no trânsito.
"Publicidades luminosas desviam a atenção de forma semelhante ao ato de usar um earphone ou escutar áudios no celular, visto que, com o aparelho na mão, há efeito adicional de comprometer a motricidade", comparou.
Questionado sobre a norma de haver uma distância maior entre os paineis na Estrada Parque Aeroporto (EPAR), o especialista pondera que o problema maior está na proximidade dos elementos luminosos da pista. "É impossível não desviarmos a atenção, com aquele painel tão próximo a nós".
De acordo com distrital Wellington Luiz, "a lei tem o objetivo de conter o espalhamento sem critérios de novos dispositivos luminosos. Em nosso entendimento, os painéis são uma realidade de cidades modernas, mas cabe ao Poder Público garantir que a colocação destes equipamentos não desorganize uma cidade regida por tombamento."
Para Jorge Vianna, o objetivo da alteração da lei da publicidade nessas áreas tombadas é que hoje não há uma padronização, seja no tamanho ou no distanciamento. "A ideia é que nós façamos essa padronização até para fiscalizar, porque a própria fiscalização está tendo dificuldade, já que não existe nada regulado em relação a isso. Nós estamos tendo um alto número de publicidades nesse sentido, e, se a gente não começar a criar regras, podemos começar a ter áreas poluídas com as placas. A ideia é fazer isso da melhor forma. Agora, lógico que a legislação precisa ser melhorada e vai ser sempre melhorada", disse.