Patrimônio

O dilema entre crescer e preservar no debate sobre o conjunto urbanístico

O Correio falou com especialistas e setores da economia do DF para compreender as diferentes visões acerca do desenvolvimento da cidade sem ferir as características que a tornam única

Brasília recebeu da Unesco o título de Patrimônio Cultural da Humanidade em 1987 -  (crédito:  Minervino Júnior/CB/D.A Press)
Brasília recebeu da Unesco o título de Patrimônio Cultural da Humanidade em 1987 - (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press)

Um dos principais pontos de discussão a respeito da preservação da cidade é garantir o desenvolvimento econômico sem ferir o tombamento de Brasília, Patrimônio Cultural da Humanidade. A aprovação do Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB) pela Câmara Legislativa acirrou o debate. Independentemente da posição, o denominador comum é que todos argumentam, de alguma maneira, querer o melhor para a capital do país.

O coordenador do núcleo do Distrito Federal do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), Juliano Carvalho, destaca a importância de preservar as escalas que organizam o CUB — residencial, monumental, gregária e a bucólica, peças centrais do tombamento da cidade. “A forma na qual a cidade é organizada é fundamental para a qualidade de vida. Temos menos trânsito do que Fortaleza”, exemplifica Juliano.

Uma das escalas que tornam Brasília um lugar único é a bucólica, que consiste nas áreas livres e arborizadas espalhadas pela cidade. “Cada setor vai se desenvolver de forma diferente. É possível pensar em diferentes usos das áreas da escala bucólica, como a orla do Lago Paranoá. Mas não podemos esperar que essas áreas sejam usadas pelas mesmas atividades econômicas que os setores bancários nem na mesma intensidade de uso”, frisa. O urbanista oberva que a construção civil, normalmente, vai querer avançar em áreas com lotes disponíveis, como nas quadras 900.  

Como solução, Juliano aponta que já existem espaços construídos que podem ser aproveitados para usos previstos na legislação, como os setores bancários Sul e Norte, o Setor Comercial Sul (SCS) e a W3 Sul, com aplicação do retrofit, termo técnico que significa reforma de edificações voltada à melhoria de seu desempenho, em aspectos como o térmico, energético e de acessibilidade. Juliano sublinha que retrofit é diferente de restauração, reforma que é mais ligada ao valor cultural de um edifício. 

Áreas verdes 

A arquiteta e urbanista Vera Ramos aposta no crescimento qualitativo da capital, no lugar do quantitativo. “É preciso restaurar espaços públicos de uso comum e edifícios e mantê-los conservados”, ressalta Vera, que também vê uma necessidade de educação patrimonial sistemática para a população e para as autoridades. “Quem não entende de patrimônio não vai lhe dar valor e preservá-lo”, completa.

Presidente do Conselho para Preservação de Brasília (Conbras) do Instituto Histórico e Geográfico do DF (IHGDF), Vera defende que haja uma atualização de usos e atividades na cidade, mas sem sair da lógica do plano original. Ela lembra da emenda do PPCUB que permitia o aumento da altura dos hotéis de três andares nos setores hoteleiros, que o governador Ibaneis Rocha também anunciou que irá vetar. A medida seria uma mudança na volumetria dos edifícios da região, o que fere o tombamento do CUB. “Uma solução, para esse caso, seria a mudança de uso da área. Existe uma lista de atividades permitidas na região. Há alternativas que podem ser até mais rentáveis do que hotéis”, sugere. 

Outro ponto levantado pela urbanista é a complementação do projeto de Lucio Costa, com a implantação das unidades de vizinhança, a exemplo das quadras 107, 307, 108, 308 da Asa Sul. A região tem tombamento arquitetônico e urbanístico no âmbito distrital. “Os moradores dessas superquadras têm acesso, a pé, às necessidades do dia a dia, a atividades que complementam o uso residencial da região”, explica Vera. 

Para Angelina Quaglia, arquiteta e urbanista do Icomos-DF, o maior erro é tratar o desenvolvimento econômico fora da ótica de um plano de preservação para o CUB associando todo o DF. “Preservar Brasília não é permitir a desconfiguração da paisagem alegando que estão corrigindo, com o PPCUB, uma legislação ‘defasada e muito confusa’, como tem sido sugerido, mas, sim, pensar para além do desenvolvimento que privilegia poucos, e entender que é necessário permitir a participação social realmente representativa e a sustentabilidade para cada um dos eixos”, afirma. 

A escala bucólica é uma das principais características que tornam o Conjunto Urbanístico de Brasília único. Mas, para o professor do Departamento de Engenharia Florestal da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador de ciências ambientais, Carlos Rossetti, áreas verdes são fundamentais, independentemente de qualquer conceito arquitetônico ou urbanístico. 

“Brasília já identificou, no seu início, nos anos 1960, a necessidade da civilização humana de ter áreas verdes, que mantêm a qualidade do ar, a beleza cênica, a capacidade de infiltração do solo, controle de ventos e lazer”, diz o pesquisador, que lembra que Brasília é uma referência não só para o Brasil, mas para o mundo, quando o assunto é esse tipo de espaço. “Alterar isso? Só se for para melhor, para aumentar a área verde”, ressalta. 

Modernização 

O presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Distrito Federal (Sinduscon-DF), Adalberto Valadão Júnior, sustenta que as principais estratégias de desenvolvimento de Brasília sem prejudicar o patrimônio passam pela elaboração e construção de marcos regulatórios que considerem a flexibilidade e a capacidade de a cidade se ajustar a novas realidades, preservando a sua história e o seu território.

“Se a cidade garantir condições para que as atividades aconteçam de forma dinâmica, esse desenvolvimento ocorrerá naturalmente. Por outro lado, se a cidade criar obstáculos aos avanços, ela se distanciará da necessidade das pessoas, o que por sua vez estimula informalidades e ilegalidades. Esse aspecto tem a ver tanto com flexibilização quanto com atividades na área do conjunto urbanístico”, enfatiza Valadão, que também defende a inclusão do próprio desenvolvimento da cidade como ponto relevante no orçamento do governo. 

Adalberto vê como necessárias parcerias para atrair mais investimentos para o crescimento econômico da cidade. “A garantia da segurança jurídica é indispensável, inclusive para estabelecer as mais diversas parcerias, como as público-privadas, além de investimentos destinados à educação patrimonial. Uma sociedade que conhece a sua história sabe preservar e proteger o seu patrimônio”, salienta. 
José Aparecido Freire, presidente do Sistema Fecomércio-DF também aposta na modernização da cidade, que foi planejada para ter 500 mil habitantes e hoje tem cerca de 3 milhões, como ele lembra. Para o empresário, a aprovação do PPCUB é um avanço. O projeto, segundo a visão do Freire não fere o tombamento da cidade. 

“Somos amplamente a favor do tombamento, mas entendemos que é preciso modernização para geração de empregos e renda. Novas atividades surgiram, assim como novas regiões administrativas, e é preciso atualizar a legislação. Sem essa atualização, não é possível crescer”, aponta Aparecido. “O PPCUB é um documento muito extenso, que não pode ser descartado por dois ou três pontos”, sustenta, referindo-se a alguns dos aspectos que geraram polêmica entre especialistas, como os alojamentos nas quadras 700 e 900 do Plano Piloto e as mudanças na W3 Sul.   

Diversificação

O secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação do DF (Seduh), Marcelo Vaz, defende as diversificações de uso como forma de garantir o desenvolvimento da cidade, já que, segundo ele, as normas atuais datam da década de 1960.

“Estrategicamente, os usos são atualizados levando em consideração a vocação de cada setor, principalmente nas necessidades de usos complementares às atividades principais já praticadas nas regiões em que se inserem, como uma pequena farmácia em um lote antes destinado apenas ao hospital. A atividade principal permanece, mas, agora, com a possibilidade de regularização efetiva de uma de apoio”, diz o chefe da Seduh.

Marcelo assinala que a atualização das normas não traz alterações de alturas, potenciais construtivos e ocupação dos lotes, mantendo a característica original e a paisagem urbana atual. “Porém garantindo transparência e segurança jurídica, evitando entendimentos equivocados acerca da aplicação de normas muito antigas e, em alguns casos, omissas”, complementa. 

O secretário também comenta sobre ações da pasta para coibir invasões das áreas livres do conjunto urbanístico. “As invasões históricas serão tratadas, em casos específicos, com estudos previstos pelo PPCUB que permitirão ações mais efetivas, de regularização ou não, subsidiando projetos futuros e a ação do órgão de fiscalização do DF”, explica. Marcelo acrescenta que “a melhor definição das áreas verdes e novas regras que restringem a ocupação de área pública por edificações, previstas no PPCUB, promoverão maior controle e qualidade no contexto urbano”.

Sobre o texto do PPCUB aprovado pela Câmara Legislativa do DF (CLDF) e, agora, com as alterações em análise pelos técnicos da Seduh, o secretário garante que o documento mantém, de forma rigorosa, as características do projeto de Lucio Costa. “Não temos, no projeto de lei, nenhuma alteração significativa que possibilite qualquer desvirtuamento dos pontos principais de cada escala, em especial, a bucólica. As ocupações dos terrenos que compõem essa escala se mantiveram praticamente inalteradas, bem como suas alturas e potenciais construtivos, garantindo que tais ocupações e as volumetrias das obras mantenham as características originais e resguardem a paisagem e a qualidade de nossa cidade”, garante.

Marcelo cita alguns trechos do PPCUB como forma de demonstrar como o documento protege o CUB. O Artigo 36, segundo ele, apresenta uma relação dos bens culturais existentes, entre eles, bens tombados, registrado ou com indicação de preservação, e estabelece que o pedido de licença específica de demolição de blocos residenciais, situados nas Asas Norte e Sul, devem ser submetidos à análise do órgão responsável pela política cultural do DF, impedindo que venha a ocorrer outros casos, como o da demolição de um dos blocos da SQS 403. 

Outro exemplo, de acordo com o secretário, é o artigo 37: “traz importantes programas de valorização do patrimônio material e imaterial, bem como de obras de arte e referências culturais dos diferentes segmentos sociais do Distrito Federal”.

Áreas verdes

 A escala bucólica é uma das principais características que tornam o Conjunto Urbanístico de Brasília único. Mas, para o professor do Departamento de Engenharia Florestal da Universidade de Brasília e pesquisador pesquisador de ciências ambientais, Carlos Rossetti, áreas verdes são fundamentais, independente de qualquer conceito arquitetônico ou urbanístico. 

“Brasília já identificou, no seu início, nos anos 1960, a necessidade da civilização humana de ter áreas verdes, que mantêm a qualidade do ar, a beleza cênica, a capacidade de infiltração do solo, controle de ventos e lazer”, diz o pesquisador, que lembra que Brasília é uma referência não só para o Brasil, mas para o mundo, quando o assunto é esse tipo de espaço. “Alterar isso? Só se for para melhor, para aumentar a área verde”, defende. 

 “Os fundamentos das áreas verdes, especialmente na zona urbana, refletem um avanço cultural do nosso tempo. É uma mudança de paradigma onde temos preservadas áreas de preservação permanente ou públicas. Esses espaços são fundamentais pois revelam a capacidade da nossa civilização de entender o processo de ocupação do território”, diz. 

 

Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Ícone do whatsapp
Ícone do telegram

Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br

postado em 30/06/2024 00:03
x