Em 2040, o Reservatório do Descoberto pode estar seco. E mais: 30 anos depois, em 2070, o Distrito Federal contará com apenas metade da água disponível hoje, para abastecer uma população cada vez maior, e passará de um clima subúmido para o semiárido. As previsões são de Henrique Leite Chaves, hidrólogo, doutor em hidrossedimentologia, professor da Faculdade de Tecnologia da Universidade de Brasília e coordenador do Laboratório de Manejo de Bacias Hidrográficas da UnB.
As conclusões estão em um artigo que foi encaminhado para os órgãos responsáveis pela gestão hídrica da capital, mas até hoje Chaves não obteve retorno. A motivação para fazer o trabalho nasceu durante a crise hídrica de 2017/2018, inédita no Distrito Federal, que resultou em meses de racionamento de água.
"Como os reservatórios do DF, principalmente o do Descoberto, falharam em manter a oferta hídrica para a população, naquela época nós nos perguntamos o que ocorreria nos próximos 60 anos", lembra o professor. Ele conta que para o estudo foram analisados os quatro modelos de mudança climática mais usados no mundo: o inglês, o canadense, o japonês e o brasileiro.
"Fizemos uma média usando a precipitação e a evapotranspiração anual até 2070 e com essas projeções, usando a média dos quatro modelos, corremos modelos hidrológicos, que foram calibrados para a Bacia do Descoberto, responsável pelo abastecimento de água de quase 65% do DF, ou seja: mais de 2 milhões de pessoas", detalha.
De acordo com o professor, como nos próximos anos a precipitação tende a se reduzir cerca de 5% por década, em média, em 2070 teremos 30% menos chuvas do que hoje. "E é essa redução de chuvas que causará uma redução de vazão, até 2070, de 50% ou mais, lembrando que os nossos reservatórios são pequenos e de regulação anual, tanto o do Descoberto como o de Santa Maria", afirma Chaves.
Agravante
Outro agravante apontado no estudo é que, dependendo do cenário de emissões de gases de efeito estufa, o Reservatório do Descoberto, que é o maior do DF, perderá um pouco mais de volume a cada década, até secar completamente em 2040. "A partir do ano que vem começaremos a ter uma diminuição na chuva e na oferta de água. E a vazão dos rios depende das chuvas, principalmente em bacias pequenas, como a nossa", explica.
Segundo o professor da UnB, dois fatores podem acelerar esse processo: uma piora no cenário de emissões de gases de efeito estufa e o aumento da demanda por água nos reservatórios. "Para evitar que o Descoberto seque, é preciso reduzir drasticamente o consumo de água", alerta.
Apesar disso, ele ressalta que o reservatório continua operando como se não houvesse motivos para preocupação. "Autorizada pela Adasa (Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento do Distrito Federal), a Caesb (Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal) continua captando a mesma quantidade de água que captava há 10, 20 anos. Só que a situação climática mudou. É preciso começar a retirar menos água — essa é uma das principais medidas sugeridas para minimizar o quadro", completa. Para ele, a população também tem que ser educada e informada sobre o assunto.
Outra sugestão apontada no estudo de Chaves é elevar em cerca de um metro a altura da cota da crista do Reservatório do Descoberto, que com isso conseguiria guardar 12% mais água do que o volume atual. De acordo com o professor, a elevação pode ser feita com painéis de aço, por exemplo. "É possível fazer isso, já que não temos água subterrânea o suficiente no DF para suprir a demanda numa crise hídrica."
Na opinião do especialista, nem mesmo o acréscimo da água ofertada por Corumbá IV, em Goiás, será capaz de evitar a escassez no DF, caso nada seja feito para reverter a situação. "O Reservatório de Corumbá sofre os mesmos efeitos climáticos e hidrológicos do Descoberto. Ou seja: ele também vai perder vazão. E lá ainda há uma competição entre geração de energia e vazão, pois ele foi feito para gerar de energia, e não para abastecimento", afirma.
Chaves lembra que há cerca de 10 anos viu o reservatório de Corumbá IV praticamente com um volume mínimo. "Quer dizer: sem o consumo de água, já havia crise hídrica em Corumbá só para tocar duas turbinas pequenas. Imagine tirando 5 mil litros por segundo, que é a demanda de abastecimento para Goiás e DF?".
Planejamento
O professor lamenta que nem o Plano Hídrico do Distrito Federal nem os órgãos responsáveis pelo tema no DF façam análises futuras de oferta hídrica sob cenário de mudanças climáticas. "Em outras cidades do mundo — como Denver, no Colorado; Los Angeles, na Califórnia; e Paris — é o próprio setor usuário que faz esses estudos prospectivos para planejar o abastecimento de água", diz.
Ele reforça que Brasília ainda tem uma particularidade, por sediar os poderes da República. "Isso é uma questão de segurança nacional. Nos Estados Unidos, uma situação dessas jamais passaria sem o conhecimento da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês). No Brasil, teria que ser acompanhada de perto pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin)", frisa.
Poluição
Além da redução do volume hídrico, o DF pode enfrentar um outro problema nas próximas décadas: a poluição. "Assim, além de termos menos água, ela ainda estará poluída", alerta José Francisco Gonçalves Júnior, professor do Departamento de Ecologia do Instituto de Ciências Biológicas da UnB. De acordo com ele, rios como o Sobradinho, o Melchior, o Alagado, o próprio Lago Paranoá e o Lago do Descoberto têm altos níveis de poluição, inclusive, de microplásticos, cujos os níveis não são avaliados na água que é entregue à população.
"O Distrito Federal trata o esgoto, mas esse tratamento não é plenamente eficiente para retirar todos os elementos químicos como fármacos, metais, nitrogênio, fósforo e matéria orgânica. E com a redução da quantidade de água, a poluição fica ainda mais concentrada", afirma o professor, explicando que esse processo acelera a chamada eutrofização artificial, que é a morte das águas pela poluição.
Gonçalves Júnior acredita que, com as mudanças climáticas, o DF terá um período seco cada vez mais longo, e um período chuvoso cada vez mais intenso. "A tendência é termos nove meses de deserto e três meses de dilúvio. Esse é o cenário que começa a se desenhar para as próximas décadas", assinala.
A intensificação da seca pode levar a um processo de desertificação dos solos, partindo do Nordeste em direção ao Brasil Central. Além disso, a temperatura também vai aumentar, o que elevará o consumo de energia elétrica. "Recentemente quase tivemos um colapso no setor de saúde por causa da dengue. Imagine os hospitais lotados de pessoas desidratadas e com problemas respiratórios, associado a um cenário de falta de energia."
Caesb diz que risco de desabastecimento no DF é nulo
A Caesb garantiu em nota que o risco de desabastecimento no Distrito Federal é praticamente nulo, pois mesmo em condições desfavoráveis de precipitação atmosférica, os investimentos e as obras previstas pela companhia “permitirão aumentar enormemente a oferta de água e reduzir a elevada dependência do sistema Descoberto”.
Segundo a Caesb, a previsão apresentada no estudo do professor Henrique Leite Chaves “reforça a necessidade de ações imediatas e eficazes para garantir a sustentabilidade hídrica da nossa região”. Nesse sentido, o presidente da companhia, Luís Antônio de Almeida Reis, anunciou investimentos de R$ 2,8 bilhões na melhoria e expansão do sistema hídrico do Distrito Federal. Em entrevista ao programa CB.Poder — parceria entre o Correio e a TV Brasília, ele avaliou que Brasília está em uma situação hídrica controlada, mas que os moradores devem ficar atentos à forma de utilizar a água.
A companhia disse ainda que tem seu planejamento estratégico alicerçado em dois planos: o Plano Distrital de Saneamento Básico (PDSB) e o Plano Diretor de Água e Esgotos (PDAE). “Esses planos foram atualizados pela Caesb, que desenvolveu um plano de investimentos prevendo o crescimento populacional até 2053 e adotando cenários críticos de precipitação pluviométrica.”
Com base nessa premissa, de acordo com a nota, foram projetados, implantados e previstos diversos empreendimentos de reforço no sistema de abastecimento do Distrito Federal, de maneira a enfrentar condições adversas de disponibilidade hídrica.
Entre esses projetos, a companhia cita a ampliação do Sistema Corumbá, a construção de uma nova estação de tratamento de água no Lago Paranoá e o estudo de viabilidade de novos mananciais, como por exemplo o rio São Bartolomeu, o rio Preto e o rio Maranhão.
Qualidade da água
Sobre a qualidade da água do Lago Paranoá, a Caesb afirmou que “monitora a captação mensalmente, com total observância às normas sanitárias do Brasil e rigor técnico inerente ao abastecimento urbano de água”.
Assegurou ainda que “no ponto de captação de água, não há níveis de nitrogênio de nitrato, nitrogênio de nitrito ou nitrogênio amoniacal que indiquem contaminação da água. Também não é detectado fosfato ou fósforo total”.
Com relação aos microplásticos, a companhia afirmou que tanto no Lago Paranoá, como em vários mananciais de todo o mundo, “é comum detectar a presença de microcontaminantes e microplásticos, também denominados com poluentes emergentes por alguns pesquisadores”.
“A legislação brasileira, tanto a de qualidade da água para consumo humano, quanto a que trata dos padrões de lançamento ou de água superficial, não apresenta limites máximos para os microcontaminantes emergentes, o mesmo acontece no cenário internacional. Apesar disso, a Caesb se preocupa com o tema e tem desenvolvido ações e apoiado trabalhos de pesquisa em parcerias com Universidades Nacionais e Internacionais”, disse.
Adasa afirma ter estratégias
Em nota, a Adasa afirmou que tem avaliado diversas projeções e simulações de cenários futuros de disponibilidade e demanda de água no Distrito Federal. A agência disse que também considera diversos estudos e planos de médio e longo prazo, como o Plano Distrital de Saneamento Básico, o Plano de Gerenciamento Integrado de Recursos Hídricos do Distrito Federal, o Plano de Exploração dos Serviços de Abastecimento de Água e de Esgotamento Sanitário do Distrito Federal, além dos Planos de Bacia Hidrográfica do Rio Paranaíba e dos afluentes do Rio Paranaíba no Distrito Federal.
“Com base nesses estudos e planos, são definidas as estratégias de expansão e operação dos sistemas de produção e de abastecimento de água da população do Distrito Federal. A Adasa ainda acompanha a implementação dessas ações e monitora a disponibilidade natural dos recursos hídricos e o uso desses recursos para o consumo humano e outras diversas finalidades”, informou.
Assim, segundo a agência, “a operação do reservatório do Descoberto e de todos os outros mananciais de abastecimento do DF não é feita de forma isolada e estanque no tempo. Mas sim de forma integrada e em constante aprimoramento e expansão, a fim de estar alinhada com as mais abrangentes projeções de disponibilidade e de demanda de água no Distrito Federal”.
A Agência Nacional de Águas (ANA) também foi procurada, mas não enviou respostas aos questionamentos feitos pela reportagem até o fechamento desta edição. O espaço permanece aberto aos esclarecimentos.
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