São 30km entre a Rodoviária do Plano Piloto e o Centro de Atenção Psicossocial (Caps II), no Riacho Fundo. No recanto de uma chácara de 33 hectares, cercada por uma variedade de árvores do Cerrado, está uma das casas de Brasília que contam fragmentos da história da cidade e do país. A antiga Granja do Riacho Fundo, que no passado serviu como casa de veraneio de presidentes da República, guarda em seus ambientes a beleza arquitetônica de uma época e a memória sensível de um período político que custou a vida de 4.394 opositores ao governo, segundo a Comissão Nacional da Verdade.
- 64 anos de Brasília: GDF celebra arquitetura, cultura e inovações da capital
- Brasília no lar: visual modernista é aposta de arquitetos da capital
- Análise: a luz do poeta Joaquim Cardozo na arquitetura de Brasília
Ultrapassar a guarita na entrada do Caps II é, de certa forma, reencontrar o Brasil de décadas passadas. Para o professor de história da UnB Daniel Faria, que acompanhou a reportagem do Correio Braziliense ao local, a granja "traz para a gente uma sensação e uma experiência histórica muito mais profunda do que apenas ler um livro, por exemplo, relatando o que aconteceu aqui. Nesse sentido, o espaço é insubstituível".
Logo na entrada principal da casa, um painel revestido com azulejos de Athos Bulcão já indica a riqueza que existe no seu interior. Como as mansões de estilo modernista dos anos 1960, os cômodos são superlativos: salas, quartos, banheiros, escritório, cozinha, tudo é grandioso e sugere como era o cotidiano das pessoas que ali residiram.
Uma parede de cobogó — elemento constante da arquitetura da época —, na lateral que dá acesso ao jardim, permite que o ar e a luz incidam no ambiente interno tornando-o mais fresco e agradável. Na parte externa, o jardim e a piscina complementam a paisagem bucólica que circunda a casa de campo.
Cenário
A casa foi cenário de muitas decisões que impactaram a vida dos brasileiros. Exemplo disso foi o Ato Institucional nº 5, de 1968 — que, entre outras consequências cassou mandatos de parlamentares e institucionalizou a tortura no país —, teria sido elaborado na granja, antes da reunião do Conselho de Segurança Nacional, no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, em 13 de dezembro de 1969, que aprovou o texto.
Na pesquisa realizada nos arquivos da época no Centro de documentos (Cedoc) do Correio Braziliense foram encontradas diversas matérias sobre a chácara, muito utilizada pelos presidentes Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel, que reuniam no local familiares, amigos e políticos nos fins de semana, férias e feriados.(veja em Governos).
A capa da edição de 10 de outubro de 1969, sob a manchete "Médici assume hoje e reúne ministério" destaca a foto do novo presidente da República e a esposa, Scyla Médice, no jardim da Granja do Riacho, onde o casal ficou hospedado antes da posse e por diversas ocasiões durante o mandato.
Além do uso recreativo, o espaço também foi usado para reuniões e tomadas de decisões políticas. Em 9 de novembro de 1975, o Correio noticiou a reunião extraordinária do Conselho de Desenvolvimento Econômico, ocorrida na granja, quando foram aprovadas as diretrizes da política do álcool que, posteriormente, culminaram no Pro-álcool, programa criado para enfrentar a crise mundial do petróleo e incentivar a produção do combustível feito da cana-de-açúcar.
Foi lá também que os presidentes da Câmara, Marco Maciel, e do Senado, Petrônio Portella, se encontraram com Geisel para definir o pacote de reformas do governo, conforme noticiado pelo Correio na edição de 10 de abril de 1977.
Saiba Mais
Após intensos encontros com representantes da Arena, partido da situação da época, saiu da granja a notícia da indicação do general João Batista Figueiredo para suceder Geisel na Presidência. O ex-chefe do Serviço Nacional de Informação (SNI) e a esposa dele, Dulce Figueiredo, pouco usufruíram da casa do Riacho Fundo, mas, antes de deixar a Presidência, Figueiredo ofereceu a chácara para que Tancredo Neves pudesse utilizá-la até o dia da posse.
Tancredo Neves hospedou-se na granja até ser internado com quadro de diverticulite. Mas, antes, promoveu encontros no local. No fim de fevereiro de 1985, reuniu o virtual ministro do Trabalho, Almir Pazzianotto, e a cúpula do Partido dos Trabalhadores (PT), entre eles, Luiz Inácio Lula da Silva, para discutir o Pacto Social, uma espécie de consenso entre empregados e empregadores em prol do plano de desenvolvimento que o novo governo implementaria.
Memória traumática
O professor de história Daniel Faria considera que, além dos elementos da história política do país, a granja pode ser pensada "como um patrimônio sensível, um lugar de memórias delicadas e traumáticas de um passado difícil de lidar, que foi a ditadura militar".
O historiador considera que o Brasil tem uma política "não muito cuidadosa" em relação a esse tipo de patrimônio. "Fica um lugar resguardado de um certo segredo. É um lugar público, do Estado, um palácio oficial, mas que para a memória de Brasília de hoje parece uma coisa meio subterrânea, como se fosse escondida. Ninguém conhece", avalia.
Manutenção
Durante a visita ao local, a reportagem do Correio percebeu que, com o passar de mais de seis décadas desde a sua construção, a antiga Granja do Riacho Fundo apresenta uma série de problemas de conservação, como forros deteriorados, toldos rasgados e janelas de ferro sem vidro e enferrujadas. A piscina e a passagem subterrânea, que liga a casa ao heliponto usado pelos presidentes militares, estão aterradas.
Questionada, a Secretaria de Saúde (SES-DF), responsável pelo espaço (que não é tombado pelo patrimônio histórico), informou que a casa passa por manutenção rotineiramente e que já houve troca de vidros quebrados, da caixa d'água e de mais de 50 lâmpadas.
A pasta contabilizou que a rede hidráulica e a parte elétrica onde hoje está a biblioteca foram revisadas e que foi implantada fossa séptica no local. No momento, segundo a secretaria, está sendo realizada a revitalização dos banheiros. Já a revitalização completa no espaço onde atualmente funciona a oficina de ladrilhos do Caps II, segundo a SES-DF, está prevista para início de junho, no valor de R$ 68.885,39.
A secretaria explicou que o aterro da piscina foi realizado como estratégia de prevenção à dengue e também para segurança dos pacientes. No entanto, não foram explicados os motivos para o aterramento da passagem subterrânea ligando a casa ao antigo heliponto.
Caps
A sede do Caps II de hoje nem de longe lembra o clima de austeridade e medo que predominava no Brasil durante a ditadura militar. Os pacientes que lá fazem tratamento transitam livremente pela instituição de saúde que, além do atendimento ambulatorial, realiza práticas integrativas e complementares, como tricô, bordado, dança, horta, mosaico, automassagem e ioga.
"Aqui, do ponto de vista do cuidado, é uma referência no Brasil como um serviço que sempre pensou na lógica de como cuidar das pessoas integrando atividades ligadas ao ambiente externo", explica o médico psiquiatra Ricardo de Albuquerque Lins.
Ricardo lembra que ficou encantado quando entrou pela primeira vez, em 2002, no Instituto de Saúde Mental, antigo nome do Caps (veja em Cronologia), onde ele posteriormente começou a trabalhar. "A relação com a natureza, a amplitude dos espaços complementam uma boa atividade terapêutica", avalia.
Em média, o Caps atende, mensalmente, 2.800 pacientes das regiões do Gama, Santa Maria, Riacho Fundo 2, Riacho Fundo 1, Núcleo Bandeirantes, Candangolândia, Guará, Park Way e Estrutural, "o que constitui uma área de abrangência muito grande e em desacordo com a Política Nacional de Saúde Mental", critica o psiquiatra.
Na chamada Casa de Passagem, um pouco afastada da casa principal, residem atualmente 35 pacientes. Parte deles cometeu crimes graves como homicídio. O local foi construído recentemente e conta com a estrutura de uma residência, com cozinha, banheiros, quartos, sala de TV.
Cronologia
1960 — residência do prefeito de Brasília
1961 a 1986 — presidência da República
1986 — presidente José Sarney passa a granja ao governo do Distrito Federal
1988 — Instituto de Saúde Mental
1994 — Centro de Atenção Psicossocial Riacho Fundo (Caps II)
Governos
Castelo Branco (1964 -1967)
Artur da Costa e Silva: (1967-1969)
Emílio Garrastazu Médici (1969 - 1974)
Ernesto Geisel: (1974 - 1979)
Tancredo Neves: (1985) faleceu antes da posse
José Sarney: (1985-1990)
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br