O cenário caótico deixado pelas chuvas no Rio Grande do Sul tem mobilizado profissionais voluntários e representantes das forças de segurança do Distrito Federal para auxiliar nos salvamentos e acolhimento da população afetada pelas enchentes. Bombeiros e policiais militares foram enviados para ajudar nos resgates e no patrulhamento da segurança pública. O Correio conversou com um grupo de jovens que se deslocaram com recursos próprios para Porto Alegre para se juntar à missão humanitária.
A psicóloga Aisha Caroline Pozzebom, 24 anos, foi uma das profissionais voluntárias que saíram da capital federal para ajudar no atendimento psicológico das pessoas afetadas pelas enchentes em Porto Alegre. Ela, o namorado Yuri Loiola, 22, e o amigo Johnatan França, 24, foram de carro até a capital do Rio Grande do Sul no intuito de ajudar como pudessem. Ao todo, o grupo ficou cinco dias no estado. "Nossa ideia inicial era dormir no carro para não ocupar espaço nos abrigos, mas fomos acolhidos por uma família que se solidarizou e nos convidou para dormir na casa deles", relatou a brasiliense.
Enquanto Aisha ficou nos abrigos prestando os primeiros socorros psicológicos às pessoas resgatadas, Yuri ajudava nos resgates e Johnatan ajudava no conserto de embarcações e viaturas. "Tem muitos voluntários de vários lugares do país. Descreveria a situação como assustadora. Foi a primeira vez que tive contato com uma tragédia tão grande", contou a psicóloga do DF. "Quando chegamos, passamos por alguns pontos da cidade onde estava tudo normal, mas depois fomos chegando nas ruas tomadas pela água. Nos assustamos porque mesmo quando vemos pela TV não dá para ter a dimensão da situação", acrescentou.
Aisha relatou, ainda, que viveu coisas que não vai esquecer nunca mais. "A partir do momento que escolhi ser da área da saúde, escolhi uma missão para mim. Como eu tinha condições de estar ali e ajudar, não foi uma opção para mim não estar", concluiu.
Reforço militar
A Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) está presente no Rio Grande do Sul com uma equipe de 30 policiais, além de um helicóptero, três embarcações e nove viaturas. Essa é a primeira vez que a corporação envia efetivo e logística para atuar fora do DF. Os militares deixaram o DF no último dia 12 e chegaram dois dias depois, no dia 14. Divididos entre Porto Alegre e Canoas, estão atuando na missão membros da Polícia Militar Ambiental, Patamo (Batalhão de Policiamento de Choque), Batalhão de Policiamento com Cães e Batalhão de Operações Especiais.
Comandante da equipe da PMDF, o coronel Carlos Melo detalhou as atividades desenvolvidas pelos militares na missão. Ele explicou que o foco do trabalho é junto aos abrigos, além do patrulhamento das áreas de risco. "A situação tem desdobramentos diferentes à medida em que os dias vão passando. A primeira fase foi o resgate das pessoas em áreas de enchente", disse. "Com o passar do tempo, as águas vão baixando e teremos um outro cenário que é o possível retorno das pessoas para suas residências. Isso vai desencadear um outro tipo de trabalho, que é a parte sanitária e de segurança pública que foi a parte que a PMDF veio para colaborar. Também estamos colaborando com resgates conforme somos demandados", completou.
Em Bento Gonçalves, os bombeiros do Distrito Federal concentram a busca em áreas de deslizamento de terra onde ainda hoje há famílias desaparecidas. Grupos de 14 militares se revezam quinzenalmente na missão humanitária no Rio Grande do Sul e já resgataram mais de 150 pessoas, sendo 20 crianças, 68 animais também foram salvos pela corporação e uma das histórias ganhou destaque nacional: o resgate de uma égua que estava presa há dez dias no terceiro andar de um prédio em São Leopoldo. O animal foi levado para o apartamento por uma pessoa que tentou salvá-lo da cheia. A ação de resgate foi realizada em conjunto com os bombeiros do Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Paraíba e para concretizar a retirada, foi necessário içar a égua.
A tenente-coronel Paula Tyeme explica que a missão do CBMDF é composta por bombeiros especialistas em diversos segmentos e que o grupo está preparado para qualquer tipo de salvamento. Ela destaca que a solidariedade e o carinho dos moradores da região, fortemente atingidos pela maior tragédia climática que o Sul do país já viveu, são o que mais chamam atenção no meio do cenário caótico.
"Parece cena de filme, de fim de mundo, de desespero mesmo. E muitos civis querendo ajudar. A maioria das pessoas perderam tudo e essas mesmas pessoas estão ali querendo ajudar, levando comida, levando café para as equipes. Em todo momento, as pessoas se emocionaram com a gente, e a gente se emociona com elas e isso é uma energia surreal. Todo mundo querendo o bem ao próximo", detalhou a tenente.
Bombeiro militar de Goiás, cabo Vinicius Veloso seguiu para o Rio Grande do Sul com o objetivo de salvar o máximo de vidas possível. O socorrista que atuou no rompimento da barragem da Vale em Brumadinho— que provocou a morte de 272 pessoas — e em missões relacionadas a enchentes na Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro afirma que nunca viu uma tragédia tão grande como a que está em andamento no Rio Grande do Sul.
"Brumadinho parecia uma guerra. Só que em Brumadinho era uma extensão de 9km e o que impactou foi a destruição com os corpos. A gente achava muito corpo exposto, mas era só óbito. Agora, nessa magnitude que a gente viu no Rio Grande do Sul, eu nunca tinha visto. O estado inteiro debaixo da água, muita destruição. As cidades viraram rios, está tudo debaixo d'água e em uma extensão gigante. Nessa amplitude, tem muita gente viva tentando pedir ajuda e sem conseguir", comparou Veloso.
Ele contou que a cena vista quando chegou a Porto Alegre o deixou incrédulo. Assim que o trabalho começou, os bombeiros começaram a navegar pelas cidades alagadas em busca das pessoas ilhadas que precisavam de socorro. "De cortar o coração. As pessoas que conseguiram sair das casas não tiveram tempo de levar os pertences ou os animais", narrou o cabo Vinícius Veloso.
Mas alguns, recusaram-se a sair sem os bichos. Veloso assinalou o salvamento de um homem e a mãe dele, com dificuldade de locomoção por ser cadeirante, como o episódio que mais o marcou durante a missão. O filho não sairia de casa sem a mãe, e a mãe, por sua vez, não queria sair de casa sem seus animais de estimação. A união e a preocupação um com o outro foram notáveis.
A casa da família tinha três andares. O térreo já estava submerso e a água chegava na segunda parte. Na sacada do terceiro andar, o homem respondeu ao chamado do socorrista. "Eu queria muito ir. Já tentaram me levar, mas eu tenho minha mãe que é idosa e cadeirante". Após uma análise de risco e utilizando instrumentos adequados, os bombeiros conseguiram descer a mulher amarrando a cadeira de rodas e içando a idosa até o barco. "O mais impressionante é que o tempo todinho a preocupação dela não era com ela. Ela falou que tinha três animais e queria levar. Eram dois cachorros e um gato. O tempo todinho ela falava deles."
Houve também famílias que preferiram arriscar a própria sorte que ir para um abrigo, conforme conta o militar do CBMGO. "Eu lembro que estava a mãe, o filho e o cachorro em cima do telhado. A gente falou 'levamos todos para o abrigo' e ela 'não vamos ficar. Eu só peço que vocês orem por nós e que vocês passem aqui todo dia e tragam água.' É de partir o coração, o psicológico fica meio abalado. Mas temos que continuar."
Idosa ilhada
"Eu não sei de onde aquele pessoal está tirando forças", disse a gaúcha Rosana Blanke Piva, 53, que há 13 anos mora na capital federal. Uma das pessoas socorridas no Rio Grande do Sul foi sua mãe, Valquíria Ovalle Blanke, que vive em um sobrado no bairro Humaitá, um dos mais atingidos pela enchente. Foi apenas depois de 13 dias ilhada que a senhora de 81 anos foi resgatada com um grupo de vizinhos e levada em uma lancha para um local seguro. Ela chegou a Brasília na última quarta-feira em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) e está morando com a filha.
"Uma das moradoras me disse que o condomínio tinha sido evacuado e já não tinha mais ninguém lá e eu enlouqueci. Eu e minha cunhada preenchemos um SOS para resgate de pessoas. Descobrimos depois que havia ainda um grupo de vizinhos que ficou cuidando dela, mas, como eram os últimos, eles decidiram sair e a convenceram a ir com eles", compartilhou Rosana.
Valquíria explicou que não deixou o local porque não tinha familiares consigo e não se sentia segura saindo com desconhecidos. "Eu estou com 81 anos e a gente, quando é mais velha e já passou por tanta coisa, fica desconfiada e com medo. Eu não queria sair nos barcos porque não conhecia ninguém neles. Foi aí que apareceu a Telma (vizinha) e como eu a conhecia eu saí", explicou a porto-alegrense.
O filho Ricardo levava mantimentos enquanto possível, mas com o agravamento da situação já não conseguia mais chegar na casa da mãe. Sem contato pela falta de energia, Rosana só conseguia informações pelos vizinhos que já haviam deixado o local. A idosa conta que durante dois dias observou de sua janela os barcos que evacuaram seus vizinhos nas águas de quase 2m de altura nas ruas do condomínio, mas que seguiu em casa até o seu limite.
Sem conseguir sair para fazer compras, Valquíria se alimentou por duas semanas por um estoque de pão e leite que tinha em casa. Esses mantimentos foram providenciados pela filha, que do Distrito Federal fez um pedido por aplicativo e achou um motoqueiro disposto a enfrentar as águas para chegar no condomínio.
Ela foi levada para um abrigo na Sociedade de Ginástica de Porto Alegre (Sogipa), onde sua neta lhe esperava. Dois dias depois, embarcou em um voo saindo da Base Aérea de Canoas para Brasília, reencontrando a filha. Ela conseguiu trazer consigo apenas uma sacola com sua carteira, documentos e uma muda de roupas, e, agora, acompanha de longe a situação de amigos e familiares que ficaram para trás.
*Estagiário sob a supervisão de Patrick Selvatti
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