Do transporte de milhões de passageiros à entrega de itens que vão garantir o abastecimento de indústrias, mercados e fornecedores, os motoristas profissionais, sejam de ônibus, caminhões ou de vans escolares, são cruciais na prestação de serviços essenciais à população. E a pressão constante inerente à atividade faz com que muitos desses trabalhadores acabem buscando refúgio no álcool e nas drogas. Para especialistas, a busca por essas substâncias está atribuída à carga de trabalho exaustiva, ao controle da paciência, à responsabilidade excessiva e aos riscos a que são submetidos.
Um levantamento produzido pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), em novembro do ano passado, a partir de uma operação que fiscalizou rodovias do DF, de Rondônia, Bahia, Paraná e de São Paulo, revelou que 25,47% dos motoristas profissionais trabalham mais de 13 horas diárias, enquanto 56,60% fazem o expediente entre 9 e 12 horas. Entre aqueles que trabalham mais de 16 horas, 50% dos 106 motoristas ouvidos na pesquisa confessaram usar algum tipo de substância. Entre os que utilizam algum tipo de droga, 77,27% alegaram que o objetivo é "não dormir".
Nesta reportagem, o Correio mostra, com base em entrevistas com médicos, motoristas e estudos científicos, quais são as principais reclamações dos profissionais da categoria e os motivos que os levam a entrar para o mundo do alcoolismo ou das drogas, seja de uso moderado, seja em excesso.
O médico Lucas Albanaz, especialista em clínica médica, avalia as questões que envolvem os profissionais do ramo. "São profissões que envolvem um estresse inerente, principalmente no que diz respeito à responsabilidade com os passageiros ou com as cargas. Um profissional que trabalha dentro de um veículo por seis, oito, 12 horas ou mais, torna a função altamente exaustiva. Associado à qualidade de vida, temos a questão da alimentação, a falta de exercício físico, ou problemas familiares. Situações que podem evoluir para o uso de bebidas em excesso", afirma.
Problema
João Osório, diretor do Sindicato dos Rodoviários, confirma que o alcoolismo é um problema recorrente entre os motoristas de ônibus do DF. A entidade tenta gerenciar conflitos, como é o caso de funcionários que acarretam problemas no emprego por causa do álcool. "Geralmente, é um trabalhador que começa a ter deficiências nas atividades, como as faltas ao trabalho e, em casos menos comum, o de chegar ao serviço embriagado. Nós fazemos o acompanhamento e tentamos impedir possíveis demissões, porque entendemos que trata-se de um problema de saúde", enfatiza.
Um motorista de ônibus do DF, que preferiu não revelar a identidade, falou ao Correio sobre os desafios enfrentados na profissão. Na função há mais de 14 anos, o profissional também já foi caminhoneiro, mas largou tudo após o nascimento do filho. "A gente se acostuma com a rotina, mas nos arriscamos todos os dias. O maior problema para mim é o trânsito. Não tem como você não se estressar. Vivi situações em que, mesmo eu estando certo em um acidente, paguei o valor e dividi em inúmeras vezes. Vem descontado do salário", conta.
Em mais de uma década como motorista, o homem relata ter visto muitos amigos se "afundarem" na bebida e até perderem o emprego. Ele diz que costuma beber, mas, atualmente, com moderação. "Quando eu era caminhoneiro bebia mesmo, até cair. Eu fazia entregas em fazendas e ficava esperando eles tirarem a carga por um ou dois dias. Então, ficar parado pra quê? Eu bebia."
Iran Moura, 62 anos, trabalha há quase 30 como motorista de ônibus e conta que já viu de tudo na profissão. Apesar de não ingerir bebida alcoólica, relata ter presenciado a demissão de vários amigos em decorrência do problema. "Hoje, busco fazer meu trabalho com prazer. A gente vem para cá (Rodoviária), começa o trabalho e termina seis horas depois. Penso que essas seis horas têm que ser prazerosas. Hoje, mesmo aposentado, continuo aqui por gostar. Mas, por ser seis horas, muitos vão para a casa, não sabem, ficam solitários e entram na bebida", desabafa. Para passar o restante do tempo com qualidade, Iran optou por estudar direito e está no 6º semestre do curso. "Não quero dar trabalho para a esposa. Tenho que procurar o que fazer", brinca.
Jornada extensa
Imagina dirigir um caminhão por nove, 10, 11, 12 horas ou até mais, sem interrupção. Essa é uma realidade dos caminhoneiros. Por vezes, esses profissionais extrapolam o limite do cansaço mental e físico para chegar mais rápido com a carga ao destino e, assim, não perder tempo nem dinheiro. A pressa e a necessidade de se manterem acordados levam os trabalhadores dessa área ao uso de substâncias psicoativas (anfetaminas, cocaína e cannabis).
Conhecida como Lei do Caminhoneiro, a Lei n.º 13.103, de 2 de março de 2015, dispõe sobre a profissão. Estabelece uma jornada diária de 8 horas, podendo ser prorrogada por até duas horas ou 4 horas, mediante acordo coletivo. Em junho do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucionais 11 pontos da lei, incluindo o tempo de espera (em que o motorista aguarda a carga e descarga do veículo) na jornada de trabalho.
O MPT afirma que as normas são ignoradas e há casos em que os caminhoneiros ultrapassam as 12 horas diárias. Paulo Douglas Almeida, procurador do trabalho, cogita, futuramente, montar um grupo de trabalho. "Em acidentes, por exemplo, que nitidamente tiver relação com fadiga ou até uso de drogas, vamos buscar estabelecer protocolos de prevenção, até mesmo para a empresa saber como tratar o profissional", afirmou ao Correio.
Os estudos do MPT sobre o tema "alcoolismo e motoristas profissionais" começaram em 2007, depois que a mulher de um motorista queixou-se que o marido chegava em casa embriagado após o expediente. Em 2012, numa nova pesquisa de campo, constatou-se uma diminuição de casos como esse. Mas, em 2015, o índice aumentou. "Notamos que os profissionais utilizavam uma espécie de coquetel de drogas, inclusive, com o uso de substâncias para dormir."
A médica Rosylane Nascimento, da Diretoria Científica da Associação de Médicos do Trabalho (Anamt), atribui a entrada de motoristas profissionais para o mundo do álcool ou das drogas à pressão para a entrega da carga em um tempo curto. Ela explica que as substâncias interferem na atividade cerebral. "O álcool, por exemplo, durante um longo tempo, causa lesões. Existe uma baixa na atividade, causa lentidão, tremores, a pessoa fica sonolenta e, consequentemente, aumenta o risco de acidentes", ressalta.
Quanto aos motoristas de ônibus, apesar da jornada de trabalho mais mais curta, são submetidos a situações altamente estressantes, como o excesso de contato humano e os congestionamentos. "Há o risco de violência, os ataques de assalto, manifestações. O próprio motorista sofre violência verbal, é desrespeitado, xingado e agredido", argumenta a médica. Recorrer ao álcool ou às drogas é como se fosse uma válvula de escape para fugir desses contratempos. "Ainda há outros componentes, como a vulnerabilidade individual ou social, familiar, socioeconômica e até a questão da regulamentação do álcool", completa.
Cristiano Eduardo, 47 anos, é caminhoneiro há 20 anos e mora em São Paulo. O profissional é um dos poucos que presta serviço a uma empresa responsável por estipular as horas de viagem e de pausas. A empregadora para a qual trabalha dispõe de um tablet de rastreamento. "Andamos quatro horas, paramos 30 minutos ou uma hora para o almoço e descansamos oito horas. É regra", explica.
O trabalhador presta serviço a uma empresa de sachês de ketchup e roda o Brasil inteiro, principalmente o DF, Goiás e Minas Gerais. Conta que nunca recorreu a substâncias psicoativas, mas que esse é um hábito comum na categoria. "Quem trabalha com cargas de verduras ou frutas, por exemplo, geralmente usa, porque precisa chegar ao destino mais rápido senão perde o frete, porque a fruta apodrece", diz.
Ao contrário de Cristiano, o paulista Eduardo Paié, 28, trabalha com o próprio caminhão e depende das comissões dos fretes para garantir o salário. Mesmo sem patrão, ele prioriza a saúde mental e física. "Não existe profissão que te obrigue a usar coisa para se manter acordado. Eu, geralmente, sei o tempo que vou gastar nas viagens, então estabeleço a jornada de estrada, pausa, descanso. Se sentir sono, eu paro, mesmo se eu correr o risco de perder a carga", fala.
Ao falar de estresse no trabalho, Cristiano e Eduardo concordam: o trânsito é uma das principais causas para tirá-los "do sério". "A estrada é terrível, principalmente do DF, tem muita trepidação, que são ondulações, e oferecem riscos de acidentes."
Fiscalização
O motorista profissional sofre as mesmas penalidades de um comum em caso de ser flagrado sob efeito de álcool. A multa é de R$ 2.934,70, além de sete pontos descontados da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e a suspensão por 12 meses para dirigir. Clever de Farias, diretor de Policiamento e Fiscalização de Trânsito do Departamento de Trânsito (Detran-DF), explica que há uma consciência maior entre os motoristas profissionais. "Eles sabem que, em caso de flagrante, serão suspensos, ficarão sem dirigir, sem trabalhar e, a depender das normas da empresa, perdem o emprego", detalha.
A cada 15 dias, as equipes de educação do Detran vão aos terminais de ônibus para falar com os motoristas sobre o uso de celular ao volante, bebidas alcoólicas e atenção às faixas de pedestre.
O Correio questionou as empresas de ônibus sobre o tratamento oferecido aos motoristas em casos de alcoolismo. A empresa respondeu que adota programa de reabilitação em parceria com instituições especializadas e que prioriza a política de prevenção ao álcool e drogas, por meio de conscientização, educação e suporte.
Por meio de nota, a Urbi esclareceu que promove treinamentos constantes sobre conduta e procedimentos operacionais para os funcionários. "Estamos na campanha Maio Amarelo que se estenderá até o fim do ano, a fim de reduzir sinistros e melhorar a prática de direção defensiva" frisou. A Piracicabana não respondeu aos questionamentos.
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