Sublime e transformadora, a gravidez é um momento carregado de sentimentos. Para que seja saudável, cuidados são necessários desde o pré-natal ao parto. Contudo, na hora de dar à luz, comumente gestantes são submetidas à violência obstétrica. E o que poderia ser uma magnífica experiência acaba tornar-se um trauma, que pode durar por muito tempo e afetar, inclusive, o pós-parto.
Para apoiar as futuras mães, cada vez mais as gestantes têm conhecido a importância do trabalho das doulas, profissionais que participam de todas as fases da gestação, em especial, do momento de dar a luz.
Entendendo a importância dessas profissionais, desde 2016, o Instituto Federal de Brasília (IFB) oferece, por meio de acordo de cooperação técnica com o Instituto Matriusca, curso de qualificação para essas mulheres. Atualmente, o curso é ofertado nas unidades de Planaltina, Ceilândia, São Sebastião e Gama. Ele é realizado de forma híbrida — reunindo atividades presenciais e a distância — com duração de dois meses e 15 dias.
Thatiane Sampaio, professora doutora do campus do IFB de Ceilândia, explica que o curso é ofertado para mulheres (cisgênero ou transgênero, de identidade não-binária ou intersexo que podem engravidar), maiores de 18 anos que tenham formação a partir do ensino fundamental.
Os docentes do IFB são responsáveis por ministrar os cursos básicos. As voluntárias do Instituto Matriusca ficam à frente das áreas específicas, uma vez que todas são doulas atuantes no mercado. Ao se formarem no curso, muitas alunas se voluntariam para dar aulas para as próximas turmas. "Essa parceria público-privada traz o empoderamento para a mulher que quer ajudar a outra mulher a se capacitar", afirma Thatiane.
Edilsa Rosa, professora do IFB campus Planaltina e coordenadora do acordo de cooperação entre o IFB e o Instituto Matriusca, destaca o protagonismo do campus Planaltina em relação à formação. Ela fala sobre o esforço de oferecer vagas para as interessadas, especialmente em casos, como o de Ceilândia, quando a unidade não pode ofertar a formação, neste semestre. "O curso de doula tem um propósito muito bacana, então, vale o esforço de toda a sociedade e faz parte da missão do IFB contribuir de várias formas, inclusive, apoiando e dando todas as possibilidades para que ele continue acontecendo", destaca. A formação recebe o apoio de emendas parlamentares, que fomentam o projeto.
Marilda Castro, presidente do Instituto Matriusca e coordenadora de cursos de doula, atua na profissão desde 2006. É uma das responsáveis por iniciar, em 2011, os trâmites para que a profissão conquistasse os direitos básicos, como a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), e, ainda, pela negociação com o IFB para o início da parceria que culminou na criação do curso. A presidente explica que na formação há matérias que abordam a fisiologia do puerpério, a amamentação, os cuidados com o bebê e o trabalho de parto.
Durante o curso, as futuras doulas aprendem a atuar desde o período menstrual até o ato de parir. A presença das profissionais promove menor incidência de intercorrências na gravidez e no parto, mas é relevante salientar que não anulam a necessidade da presença de uma equipe profissional médica. Todo o trabalho de doulagem é baseado, segundo as professoras, em evidências científicas.
Reviravolta
A estudante de serviço social Simara Mota, 23 anos, formou-se na turma de doulas do final do ano passado e, agora, é colaboradora-voluntária do curso. Ela está à frente de matérias relacionadas à profissão. Na primeira vez que foi ao instituto presencialmente, teve de deixar a filha, à época com três anos, sob os cuidados de outra pessoa. A angústia foi tamanha que, antes de iniciar a aula, estava decidida de que não voltaria. "Quando eu cheguei em sala de aula a primeira coisa que a professora falou foi que quem tinha crianças poderia levá-las. Naquele momento, eu chorei. Eu engravidei no fim da adolescência e sentia como se eu tivesse cometido um crime. Eu não conseguia estudar, não tinha uma rede de apoio, então o acolhimento que eu recebi no curso foi extremamente importante para mim", diz Simara, que contou que naquele tempo enfrentava um quadro de depressão, e o apoio recebido pelas professoras e demais alunas fez com que ela se sentisse melhor.
"Eu mudei da água para o vinho. O curso traz essa dignidade para a mulher. Às vezes a gente só quer se sentir incluída, fazer as coisas sem sentir que está incomodando", descreve. A filha, Luísa, agora com quatro anos, frequentou todas as aulas junto com a mãe e diz a todos que é formada em doulagem também. Após terminar o curso, Simara mergulhou nos estudos. Atualmente, concilia os atendimentos de doula com a faculdade de serviço social e o voluntariado, em parceria ao Instituto Matriusca.
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Empoderamento
No caso de Kawane Candia, 35 anos, o envolvimento com a doulagem aprofundou-se com tal intensidade que ela tornou-se presidente da Associação de Doulas da Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal (Ride-DF) e Entorno. Mãe de três meninas, de 11, sete e quatro anos, ela relata ter sofrido violência obstétrica em seus partos — as filhas nasceram a partir de cesarianas desnecessárias.
Durante a terceira gestação, Kawane fez o curso de doula pela primeira vez, inicialmente particular, no Instituto Matriusca. Ela conta que sentiu como se tivesse aberto uma porta que dava acesso a outro mundo. "Eu tive doula na última gestação, mas, ainda sim, o parto foi cesárea. Infelizmente fui assistida por uma equipe não muito legal. Eles botaram muita pressão, falavam o tempo todo que a minha filha entraria em sofrimento." A presidente da associação ecplica que dentro dos hospitais isso pode acontecer mesmo com a presença de uma doula, como foi o caso dela, pois essas profissionais ainda não são ouvidas tanto quanto deveriam. Por isso é necessário um posicionamento consistente dos familiares que acompanham o parto.
Depois do nascimento da terceira filha, Kawane enfrentou um intenso puerpério e foi no curso oferecido pelo IFB, no campus de Planaltina, em 2022, que encontrou acolhimento. "Minha vida começou a mudar ali. Dentro do curso, se aprende muito, porque os requisitos são apenas ter mais de 18 anos e saber ler e escrever. Há mulheres de todos os níveis de escolaridade reunidas ali, e a gente passa dois meses e meio conversando e compartilhando nossas visões sobre as nossas questões", lembra.
Atualmente, ao lado de Marilda, Kawane está à frente do componente de políticas públicas. "A gente traz informações sobre os direitos e deveres da gestante, da família e das mulheres, sobre a Lei Maria da Penha, violência obstétrica de gênero e de raça. As alunas saem de sala empolgadas, comentando que não sabiam daquilo."
"O curso de doula do IFB abre as portas para a mulher. Eu cheguei devastada, dentro de um relacionamento tóxico e logo me separei. Tive vontade de continuar estudando, entendi que eu dou conta sim. Agora, estou no sétimo semestre do curso de enfermagem e me sinto muito bem. Hoje, sou mais forte. Sou outra mulher", orgulha-se.
No Congresso Nacional, tramita um projeto de lei que pretende regulamentar a profissão de doula, entretanto, a presidente do Instituto Mariusca explica que as profissionais são contra a regulamentação. "Doula é a única profissão que, no mundo inteiro, não tem tradução, em todo lugar significa a mesma coisa e trabalha da mesma maneira. Então, quando se fala em regulamentar uma profissão que é naturalizada para mulheres é mais uma violência contra a mulher. Exigir segundo grau das profissionais é deixar de fora todas que não têm ensino médio: as indígenas, a população ribeirinha, as agricultoras. Todas elas ajudam outras mulheres a parir. Por que não remunerar esse trabalho? Por que deixar de considerar essas mulheres doulas?"
A professora Tathiane explicou que os professores defendem que o projeto de lei leve em consideração a remoção da exigência de formação de nível médio para a profissionalização das doulas. "Evidencia-se o impacto social e econômico dessas mulheres serem reconhecidas pelo trabalho que prestam para serem incluídas no movimento de remuneração da economia do cuidado, mulheres de áreas periféricas e de baixa renda per capita no Brasil", conclui.