Alternativa ilegal à mobilidade urbana, alguns carros, vans e ônibus trafegam em vários pontos da capital, oferecendo trajetos para regiões administrativas do Distrito Federal e cidades do Entorno. Em 2023, foram 692 veículos autuados por efetuar transporte não autorizado, 400 a mais do que em 2022, de acordo com a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Somente neste ano, até 10 de abril, são 36 autuações.
Já o Departamento de Trânsito (Detran-DF), com dados consolidados da Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) e Departamento de Estrada e Rodagem (DER), informou que não faz operações específicas para inibir esse tipo de serviço clandestino. De acordo com o órgão, porém, no ano passado, 1.827 motoristas foram autuados trafegando com pessoas ou bens sem a devida autorização. Já este ano, de janeiro a março, foram 302 ocorrências.
Para muitos passageiros, a pirataria é uma opção devido à flexibilidade, já que os veículos operam em dias e horários em que o serviço regular não atua em grande escala. Nos fins de semana, essa situação se escancara. Em um sábado, o Correio embarcou em uma van clandestina que passou por uma parada de ônibus no centro de Ceilândia com destino a Valparaiso de Goiás, a 30km de Brasília.
A passagem custou R$ 6,80, um pouco mais barata do que o serviço regular — R$ 7,60, após reajuste em fevereiro, determinado pela ANTT. Dentro da van, a reportagem identificou a ausência de equipamentos básicos de segurança e o desconforto. Os passageiros viajam apertados, enquanto os motoristas optam por rotas alternativas para evitar a fiscalização nas estradas.
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Sem conforto
Conciliar o trabalho e estudos já é uma batalha para o estudante Pedro Resende (nome fictício), 21 anos, mas a falta de opções de transporte adequado agrava as dificuldades diárias. Morador de Valparaíso, o jovem estuda em uma universidade de Taguatinga e recorre ao transporte pirata em várias ocasiões para não chegar atrasado às aulas da semana. "Para nós que moramos no Entorno, tudo é mais difícil. Não temos um serviço de transporte em massa, o que é bem conhecido por todos. Nunca houve melhoria", relatou o estudante, que, em todas essas ocasiões, teme pela própria segurança. "Não escolho esse meio de transporte por 'mais conforto'. Eu o utilizo porque não temos, em várias vezes, opções de ônibus regulares. Os poucos que chegam, quase sempre vêm cheios e atrasados. Eu acredito que a maioria desses condutores provavelmente tenha alguma irregularidade na carteira de motorista. Esse é um risco que muitas pessoas enfrentam", desabafou.
Para se deslocar a Brasília, muitos cidadãos do Entorno ingressam em grupos de WhatsApp, onde há combinação de corridas entre passageiros e motoristas de aplicativo. Apesar de ser uma prática irregular, Jailson afirmou que nunca teve nenhum problema com esse tipo de serviço. "Não é o correto e também não é seguro, mas foi a alternativa que encontrei", argumentou o assessor de marketing Jailson Ribeiro (nome fictício), 27. O morador de Cidade Ocidental utiliza o transporte público para ir ao trabalho nos dias úteis, no Plano Piloto, e relata que, aos sábados, enfrenta um dilema para chegar à capital pela escassez de ônibus. "Não há ônibus. Eu tenho o maior receio de utilizar essas vans, das quais sequer sabemos a procedência e quem opera. Já ouvi histórias de pessoas que dentro de vans foram vítimas de violência", relembrou.(veja Memória)
A moradora de Valparaíso de Goiás Maria Eduarda (nome fictício), 29, sente-se insegura diante desses relatos de violência, mas, como trabalha seis dias por semana em Ceilândia, enfrenta dificuldade aos sábados para retornar para casa devido à falta de ônibus e se vê obrigada a encarar o medo. "Não me sinto segura nessas vans, mas não tenho escolha. Às vezes ouvimos sobre acidentes ou até casos de assédio nesses transportes. Mas não posso fazer nada. Tenho um filho em casa e só posso aproveitar meu tempo com ele nos fins de semana. Esperar pelo ônibus não é uma opção viável", lamentou a empregada doméstica.
Demanda territorial
Para o doutor em transportes pela Universidade de Brasília (UnB) Marcos Thadeu Queiroz, o financiamento do sistema regular de transporte público é sempre um desafio, caracterizado pela predominância de "movimentos pendulares" — o aumento da oferta de ônibus nos horários de pico. O especialista detalhou que, fora desses períodos, é quando o setor clandestino tende a se sobressair. "A exemplo de certa incapacidade do Poder Público em se antecipar à demanda por transporte gerada pelas transformações territoriais do DF e Entorno, a agilidade de agentes privados em perceber a oportunidade oferecida pela demanda reprimida e a limitação do sistema de fiscalização acabam tornando vantajoso o risco dessa oferta", defendeu.
Queiroz relembrou que há outras motivações que levam passageiros a optarem pelo transporte irregular. O especialista citou uma reportagem veiculada pelo Correio em 14 de abril, na qual muitos passageiros relataram a frequência de ônibus que quebram pelo caminho. "Baixa percepção de valor, confiabilidade e conveniência do serviço regular por seus usuários e desinteresse/impossibilidade das empresas regulares em operar em linhas/trechos pouco rentáveis. Entendo que esses fatores contribuem para o estabelecimento e operação desse tipo de transporte", explicou.
O acadêmico assinalou que há necessidades de deslocamento de cidadãos que não são adequadamente coberta pelo sistema regular, mas que não podem ser ignoradas. "Além disso, considerando os processos de Planejamento Territorial e de Transportes no Distrito Federal, fica claro que a dinâmica do território precisa ser melhor e mais atentamente compreendida e monitorada de forma que seja possível antecipar-se às transformações que impactam em novas demandas por deslocamento", completou Queiroz.
Professora da UnB e especialista em trânsito, Zuleide Feitosa acrescentou que o sistema público não satisfaz os passageiros, não atendendo às demandas do usuário. Para ela, o serviço irregular e pirata ganha força com essa escassez de opções. "Uma vez que o transporte regular não atende a demanda das pessoas, por si só infringe um direito constitucional, onde se declara que os indivíduos têm o direito garantido de transporte público garantido para suprir suas necessidades de ir e vir. Seja trabalho, lazer, saúde, qualquer que seja a necessidade", alegou a acadêmica.
O Correio mostrou os relatos colhidos pela reportagem à especialista. Para ela, os exemplos de passageiros que optam pelo irregular mostram que os usuários substituem o serviço regularizado porque o Estado falhou. "O transporte irregular não demonstra segurança, colocando passageiros sob risco de assaltos e sequestros. Não vale a pena as pessoas suprirem a ausência do transporte regular pelo irregular. Talvez isso não seja do conhecimento das autoridades e, por isso, deve-se procurar as ouvidorias para relatar", afirmou Zuleide.
Consórcio
Em janeiro deste ano, representantes dos governos de Goiás, do Distrito Federal, da União e da ANTT se reuniram em reunião para a criação de grupo de trabalho para a formação de um consórcio que ficará responsável pela gestão do transporte semiurbano no Entorno do DF. O acordo já vinha sendo negociado desde o ano passado entre os governos, mas sofreu com percalços sobre a divisão da tarifa técnica de quem arcaria com os valores.
Na ocasião, o superintendente da Região Metropolitana de Goiânia da Secretaria-Geral de Governo do Estado de Goiás, Ricardo Souza, elencou que as condições do serviço oferecido à população no Entorno são consideradas precárias, com ônibus antigos e sucateados. "Essas empresas são contratadas por permissão precária e o atendimento à população do Entorno do Distrito Federal é muito ruim. Você vê que as manifestações acontecem o tempo todo, com reclamações por ônibus velhos e que pegam fogo espontaneamente", afirmou ao portal de notícias oficiais do Estado de Goiás.
Procuradas para manifestação oficial sobre a fiscalização do transporte clandestino, a Polícia Militar (PMDF) e a Polícia Rodoviária Federal (PRF) não responderam aos nossos questionamentos. A reportagem não conseguiu localizar algum sindicato que seja responsável pelas empresas de ônibus que atuam entre a capital federal e o Entorno em relação ao prejuízo causado pelo serviço irregular.
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