Athos Bulcão disse que Brasília deveria educar, cotidianamente, os brasilienses para cultivar a arte. Talvez isso não aconteça com todos. Contudo, no caso de Galeno, a cidade funcionou mesmo como uma grande escola de arte ao ar livre. Com a inquietação de curumim arteiro, paulatinamente, assimilou o espírito da cidade ao vivenciar a arquitetura de Niemeyer, os painéis de Athos Bulcão, as banderinhas de Volpi e a pintura de Rubem Valentim, inspirada nos signos do candomblé e da cultura afro-brasileira. Aprendeu a valorizar a sua vida de menino nordestino e a olhar para os objetos, as brincadeiras e as festas sob um prisma modernista.
O nome dele é Francisco de Fátima Carvalho. Chegou a Brasília em um domingo de junho de 1966, com 8 anos, cheio de curiosidade. Era esperado pelo pai na rodoviária do Núcleo Bandeirante, cidade de faroeste dos tempos inaugurais de Brasília. Sempre foi um menino fujão, de repente, desaparecia de casa, para aflição da mãe.
Ele é um peladeiro de carteirinha. Em 1965, quando tinha 9 anos, fugiu de casa em um caminhão para assistir a um jogo no Estádio Pelezão entre o Santos (de Pelé, Carlos Alberto, Clodoaldo e Edu) contra um time com os melhores craques das construtoras de Brasília. Claro que o Santos ganhou de mais de meia dúzia a zero, mas Galeno vibrou com a aventura de ver o maior jogador do planeta pisando nos gramados candangos. A paixão pelo futebol virou arte: ele fez questão de desenhar as camisas do time de Brazlândia, cidade onde mora em Brasília.
Galeno é um legítimo filhote do modernismo brasiliense. Com figuras e materiais precários (carrinhos de lata de sardinha da infância, carretéis, bilros da mãe bordadeira, canoas construídas pelo avô, móveis do pai marceneiro), ele faz uma festa brasileira para os olhos, recriada sob lentes construtivistas que assimilou na vivência de Brasília. "Nasci no Delta do Parnaíba piauiense, tive vida boa de menino que caçava passarinho com baladeira e nadava no rio. Gilberto Gil fala que a Bahia lhe deu régua e compasso. Posso dizer que o Delta do parnaíba me deu tintas, cores e histórias para contar. A minha maneira de fazer arte é simples e natural, como era a da minha família, de artesãos. Meu avô e meu irmão construíam canoas. E minha mãe era bordadeira."
A sua arte é de extremo requinte e elegância. Tem algo do traço, da fantasia, do ritmo e da signagem de Volpi, de Athos Bulcão e de Rubem Valentim, mas é, cada vez mais, puro Galeno. "A minha relação com Brasília é a de museu a céu aberto. Influenciou-me pela luz, a composição e a forma. Tem gente que só olha, mas não vê. Já a sensiblidade te leva a ver com interesse. A Brasília que eu gosto é a da minha infância. Sempre pintei o interior de Brasília. Pintei os barracos, contei a história do meu pai, da minha mãe e dos meus amigos."
Como não teve acesso à universidade, conta que procurava a arte que estava na cidade. Imaginava que nunca poderia chegar perto de Athos Bulcão ou Rubem Valentim. Quando Galeno foi convidado a expor seu trabalho na galeria de Ana Maria Niemeyer, filha de Oscar, no Rio de Janeiro, Rubem Valentim esteve no atelier em Brazlândia, olhou os quadros e disse: "Pode expor". Depois, ele participou do júri e lhe concedeu o prêmio principal. "E um outro grande mestre que tive foi o artesão seu Quinca, de Brazlândia. Eu ia à casa dele e ficava olhando ele trabalhar. Não falávamos nada, mas a gente se comunicava de maneira intuitiva."
Autodidata
Escavou, de maneira (quase sempre) autodidata, com muito trabalho, um caminho singular. Percebeu que, para encontrar uma linguagem própria, precisava voltar às coisas simples de menino inebriado pelas formas e cores do Delta do Parnaíba piauiense. Mas sob as lentes construtivistas assimiladas com a vivência da cidade-museu aberto Brasília: "Pintei figuras e paisagens como todo iniciante. Mas, depois, cheguei a algo que representa a minha alma. Sempre gostei de falar do lugar onde estou. Se moro em Brazlândia, não vou pintar algo de Nova York. Não tenho como referência apenas a história da arte, mas, também, a do meu pai e da minha mãe."
O Parnaíba invadiu Brasília e Brasília atravessou o Parnaíba, numa teia que lembra a urdidura dos bordados de sua mãe ou os grafismos da arte indígena; as casinhas dos bairros pobres nordestinos e os edifícios de curvas audaciosas de Niemeyer; os carrinhos de lata de sardinha e os carretéis das costureiras; os camaleões do Piauí e os calangos do Cerrado; as lamparinas e as fiações dos postes de luz do Plano Piloto; as dunas de areia e os espaços brancos de silêncio da capital modernista.
O prestígio internacional veio depois que o Cerimonial da Presidência da República passou a adquirir os seus quadros para que os presidentes Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff presenteassem representantes de outros países. O ex-presidente dos EUA Barack Obama foi dos agraciados.
Os destinos de Galeno e de um dos seus mestres, Alfredo Volpi, se cruzariam em 2009 na Igrejinha Nossa Senhora de Fátima (108 Sul). Foi convidado a refazer, com a sua visão, uma parede pintada por Volpi, que um padre de poucas luzes apagou com uma demão de tinta. A versão de Galeno não poderia deixar de incluir pipas, borboletas e uma Nossa Senhora com as cores vibrantes da cultura popular brasileira.
A princípio, provocou reações de devotos conservadores, mas, com o correr do tempo, tornou-se uma grande atração. "Não tive medo de enfrentar a ignorância, a minha dúvida era se eu conseguiria fazer o painel para substituir o trabalho de um dos grandes criadores da arte brasileira", diz. "Mas Nossa Senhora me deu força e eu consegui. Brasília me acolheu, colocou um manto por cima e me abraçou." Para Galeno, Brasília sempre foi e será a menina dos seus olhos.
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