Aniversário de Brasília

Pioneiro, Gilberto Salomão detalha saga para erguer capital no cerrado

Memória viva da construção de Brasília, Gilberto Salomão chegou à capital em 1958 e conta como foi a saga de erguer uma cidade no meio do Cerrado

"Jânio Quadros queria porque queria prender Juscelino Kubitscheck, logo após ser eleito. Convocou guardas e foram para um galpão no Setor de Indústrias (SIA) — era daqueles galpões modelo americano, de telhas de alumínio e arredondado, como os da antiga Cobal (Companhia Brasileira de Alimentos). Jânio tinha informação de que provas das propinas, supostamente recebidas por JK, estavam nesse galpão. Ele tremia de ódio enquanto o galpão era invadido, tremia mais ainda quando abria as caixas e via apenas blocos de receituários destinados ao Hospital Distrital e refrigeradores também endereçados à unidade hospitalar. Nada de provas." Esse relato, exclusivo ao Correio, foi dado por Gilberto Salomão, um dos últimos pioneiros que viveu a saga da construção da Brasília.

Aos 93 anos, viúvo de Maria Salomão desde 2020, o senhor Gilberto tem três filhos, quatro netos e muita história para contar sobre o começo da Capital da Esperança.

Jose Carlos Vieira/CB -
Jose Carlos Vieira/CB/D.A Press -
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A decisão

Morava em Uberaba (MG). Meu pai, de origem libanesa, mesmo analfabeto, conseguiu ser um dos grandes empresários na região. Estava recém-casado e com um filho doente, mesmo assim, aceitei o desafio de vir para Brasília em 1958, tinha uns 29 anos. Comprei uma passagem aérea e vim pulando de cidade em cidade, num avião DC-3, até chegar à Cidade Livre, como era conhecido o Núcleo Bandeirante. Fui morar na casa de um parente, um barracão de madeira e telha de zinco. A última casa familiar da Avenida Central era desse parente, depois era a zona de baixo meretrício. Tinha vindo incialmente para cobrar um dinheiro de um empreiteiro que havia comprado um lote de cerâmica.

O negócio

Meu pai tinha uma cerâmica, nas margens do Rio Grande, no estado de São Paulo, e vendia para empreiteiras que estavam construindo Brasília. Uberaba era o último grande centro urbano antes do cerradão do Planalto Central. Uberaba foi a base da construção de Brasília. Da cerâmica do meu pai, eu via caravanas de caminhões lotadas de material de construção seguindo para Brasília. Sempre pensava com entusiasmo em Brasília, mas nunca imaginava sair de Uberaba: estava recém-casado, com o filho doente, ajudando meu pai na construção de casas e de galpões na cidade. Também estudei química industrial em São Paulo.

A construção

Os americanos foram contratados para construir, com estruturas metálicas, 11 ministérios, e fizeram também o Brasília Palace, antes do Palácio da Alvorada. Para surpresa minha, o Alvorada, sem as colunas de Oscar Niemeyer, também foi feito com estruturas metálicas dos americanos.

Amizade

Eu e Osório Adriano estudamos juntos no científico. Éramos grandes amigos. Ele era o penúltimo da turma e eu o último, colávamos nas provas juntos (risos). Osório é dois anos mais velho que eu. Estudávamos no famoso colégio Mário Palmério.

Brasília Palace

Com ajuda de amigos, saí do barraco e fui morar no Brasília Palace, onde estavam todos os empreiteiros. Israel Pinheiro não gostava de conversar com prepostos, os contratos eram diretos com os donos das empreiteiras. Então, todos ficavam no hotel, mesmo os que não gostavam da cidade (risos). Lá, encontrei o engenheiro que estava nos devendo e foi uma conversa amistosa, tanto que ganhei uma empreitada na construção dos ministérios. Acabei trazendo mais de 150 homens, inclusive engenheiros, de Uberaba para obras dos banheiros dos ministérios. Era dia e noite de trabalho, sem parar. De obra em obra. Fiquei 40 dias com a roupa do corpo. Não tinha como me comunicar com a família. A gente tinha de ir a Anápolis ou Goiânia para fazer uma ligação. Graças da Deus foi dando certo.

Vila Planalto

A Vila era só para americanos, as cantinas e os alojamentos eram diferenciados. Mas quando Israel Pinheiro mandou os americanos embora, engenheiros brasileiros assumiram a construção da cidade e ocuparam a Vila Planalto.

Inauguração da capital

Israel Pinheiro queria todas as luzes dos ministérios acesas. Peguei a empreitada de dois ou três ministérios para instalar a iluminação. Era dezembro/janeiro, chovia muito. Foi difícil. Vale lembrar que os engenheiros da Novacap eram sempre solícitos. Também tinham os azulejistas espanhóis que eram rápidos para assentar as peças. Naquela época, não tinha essas argamassas de hoje.

Relação com JK

Ofereci para JK um escritório no Edifício Gilberto Salomão, perto do Hotel Nacional. Também vendi para ele, depois da anistia, alguns pequenos apartamentos das áreas comerciais. Mas, depois, tive de comprar de volta. Ele dizia: "Gilberto, como vou poder cobrar aluguel atrasado das pessoas?"

Belmondo

Antes de ser o edifício Gilberto Salomão, o prédio era uma estrutura de 10 andares condenada. Foi lá que o ator francês Jean-Paul Belmondo se arriscou, entre tábuas soltas, nas gravações do filme O homem do Rio, no início dos anos 1960. O filme, do cineasta Philippe de Broca, foi indicado ao Oscar de melhor roteiro original. Comprei o prédio e recuperei toda a estrutura. E batizei com meu nome. Todas as unidades foram vendidas.

Niemeyer

Oscar Niemeyer queria toda Brasília clarinha, cinza, creme, essas tonalidades... não queria tijolinho vermelho em fachadas. Mas, depois, ele fez uma casa no SMPW e colocou telhas coloniais produzidas por mim (risos). Encontrei-me com ele 20 anos depois num restaurante no Rio e disse em tom de brincadeira: "Doutor Oscar, o senhor proibiu todo mundo de usar telhado de cerâmica (eram telhas longas de amianto/cimento) e a sua casa foi com telha colonial (risos)."

Cid Varela

Ele é um dos responsáveis pelo Centro Comercial Gilberto Salomão, no Lago Sul. Veio a revolução de 1964, as grandes construtoras foram embora, mas eu e uns poucos pequenos continuamos em Brasília. Construía casas na W3 e pequenos espaços comerciais na Asa Norte. Certo dia, o então prefeito (que preparou a estrutura governamental para o GDF), Plínio Almeida Cantanhede, me perguntou: "Por que você não faz um centro comercial no Lago?". Ajudaria a valorizar os imóveis da região. Ele tentou doar o terreno para mim, mas Cid Varela, que era do Conselho da Novacap, sugeriu um valor simbólico para o terreno, e tudo se acertou. Cid Varela era um homem culto, viajava o mundo.

Negócios

Os terrenos na capital eram vendidos na Rodoviária. Cheguei a comprar terreno no Lago Norte sendo vendido no aeroporto. Uma pessoa de Uberlândia vendendo sem sequer conhecer a região, mas tinha a área. Foi assim que muita gente de Anápolis e Goiânia enriqueceu com imóveis em Brasília.

Cantinas

Investi em duas cantinas naquela época. Uma na Vila Planalto e outra na barragem do Lago Paranoá. Certa vez, recebi um telefonema: "Corre aqui que estão quebrando tudo! Estão dizendo que tem bicho na comida! Era camarão (risos)".

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