LITERATURA

Crônica da Cidade: Descobertas de Ziraldo

Sua partida deixa um aperto no peito, mas o legado para a literatura, para a arte e para o imaginário de toda uma geração de leitores será duradouro

Havia um bom tempo não tirávamos Flicts da estante. Era o livro preferido do meu companheiro na infância e tive o prazer de conhecer a obra poucos anos atrás. Uma nova livraria acabara de inaugurar na cidade e fomos, em família, desbravá-la. Lá, compramos o exemplar do primeiro livro infantil assinado por Ziraldo. Uma linda história de defesa da diversidade contada apenas com formas geométricas e cores.

Na semana que se passou, decerto por algum arranjo do universo que transcende a nossa compreensão, decidi ler mais uma vez a história do pobre e feio e aflito Flicts para as meninas. A mais velha, com mais habilidade para manter o foco, até lembrava de alguns trechos. A pequenininha já se rendia ao sono acumulado durante o dia, e prestou pouca atenção, mas ainda assim se interessou por uma ou outra parte.

Ontem, depois que soubemos da partida de Ziraldo, o momento da leitura antes da hora de dormir se tornou, mais uma vez, especial. Sugeri que repetíssemos o livro de dias atrás, e elas logo toparam. Um dia, quando crescerem aos olhos dos outros — pois já mandei gravar em pedra e não as deixo esquecer de que jamais deixarão de ser as minhas pequenas crianças —, espero que se lembrem desses momentos.

Temos muito chão para andar ainda, é claro. Em breve, elas poderão conhecer mais sobre o Menino Maluquinho e outras obras do talentoso escritor e cartunista. Por aqui, já houve até mesmo foto com panela na cabeça. Só mesmo alguém com inteligência e alma rejuvenescida para despertar a emoção de maneira tão perspicaz e delicada.

O gesto transgressor para um menino tão pequeno pode ser interpretado de várias maneiras. Como um ato de rebeldia mesmo, um chamado a um olhar mais atento por parte dos adultos; um questionamento à pasteurização da vida — afinal, o que significa ser louco?; ou simplesmente a expressão de criatividade, tão necessária nos últimos tempos.

Mas Ziraldo deixou a resposta na mais celebrada de suas obras, com o nome do personagem que o sagrou: "E foi aí que todo mundo descobriu que ele não tinha sido um menino maluquinho. Ele tinha sido era um menino feliz!", escreveu em O Menino Maluquinho, de 1980, que depois virou filme, ópera e enredo de escola de samba na Sapucaí. Sua partida deixa um aperto no peito, mas o legado para a literatura, para a arte e para o imaginário de toda uma geração de leitores será duradouro.

A Lua é Flicts. Ziraldo, agora, é Flicts.

 


Mais Lidas