Crimes cruéis e que não prescrevem, o racismo e a injúria racial têm crescido na capital do país. No Distrito Federal, uma unidade federativa onde a maioria absoluta da população se declara negra, os crimes têm aumentado nos últimos três anos (veja quadro). Vítimas que sofreram na pele o preconceito de raça contaram suas histórias ao Correio. Especialista destaca que, apesar de as pessoas estarem denunciando mais, ainda há uma expressiva subnotificação desse tipo de crime.
De acordo com a série Retratos Sociais, análise divulgada em 2023 pelo Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF), no DF, 57,3% das pessoas se declaram negras. Segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP), entre 2022 e 2023, os casos de injúria racial no DF cresceram 12,1%, enquanto os casos de racismo aumentaram 39,2%. Entre 2021 e 2022, o crescimento nos casos de racismo na capital do país foi de 75% e de injúria, 10%. A nível nacional, a situação não é diferente. Ainda de acordo com a SSP, o Plano Piloto é a região administrativa com maior número de casos de racismo e injúria racial.
Segundo o 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que faz o levantamento dos dados do Brasil inteiro, entre 2021 e 2022, os casos de racismo aumentaram 29,9%, enquanto as denúncias de injúria racial cresceram 35% no mesmo período.
Nem sempre a vítima se sente à vontade para denunciar. É o caso do estudante de engenharia civil Renan Gomes, de 20 anos. O jovem relata que já sofreu racismo e injúrias várias vezes, inclusive na Universidade de Brasília (UnB), onde estuda. "Ano passado, aconteceu um episódio que foi o que mais me marcou. Eu estava caminhando rumo ao restaurante e, do nada, um rapaz gritou me chamando de macaco. Uma ofensa gratuita. Fiquei em choque, sem saber o que fazer", conta. "Demorei algumas horas para processar o que tinha acontecido. Não denunciei e nem contei para ninguém, pois fiquei sem reação, só continuei caminhando", acrescenta. Renan disse que em um determinado momento, pensou em voltar e bater em seu agressor, mas decidiu não usar a violência para retribuir outra violência. "Preferi sofrer em silêncio. Mas me marcou bastante, principalmente por ter acontecido dentro da universidade, que seria um ambiente seguro, de acolhimento. Fiquei muito tempo remoendo isso dentro de mim", finaliza.
Jaeni Azevedo, especialista em direito penal e processual penal e coordenadora do setor criminal da Advocacia Riedel, acredita que as pessoas estão denunciando mais, mas que ainda existe uma expressiva subnotificação dos casos de racismo e injúria no Brasil. Ela explica ainda que testemunhas do crime também podem denunciar. "Ainda que a vítima não tenha registrado a ocorrência do crime, outras pessoas, eventualmente, podem tomar essa providência e fazer a ocorrência. É o que chamamos de ação penal pública incondicionada. Não precisa da manifestação da vítima para que o crime seja apurado e os responsáveis processados e, se for o caso, condenados", detalha.
A produtora cultural e estudante de artes cênicas Sofia Chaves, de 24 anos, sofreu um episódio de racismo que também marcou sua trajetória estudantil. Quando estava fazendo a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a jovem foi interrompida e repreendida pela fiscal de prova por conta do cabelo crespo e volumoso. "Eu estava fazendo a prova com meu cabelo solto, que era como eu gostava de usá-los, e ela me interrompeu três vezes pedindo para que eu tirasse o cabelo do rosto porque ela precisava vê-lo, sendo que meu rosto estava à mostra, senão eu não conseguiria fazer a prova", detalha. "Depois disso, ela me trocou de lugar. Eu estava sentada na última cadeira, que foi onde fui designada a sentar, e ela me colocou para sentar na carteira em frente à mesa dela. Eu já estava desconcentrada e constrangida com tudo isso quando ela pediu que eu prendesse o meu cabelo. Me senti violada enquanto fazia a prova mais importante da minha vida. Eu não estava fazendo nada de errado e fui confrontada", conclui.
Inafiançável
Em 2023, os crimes de racismo e injúria racial foram equiparados perante a lei. Sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei 14.532, de 11 janeiro de 2023, altera a Lei do Crime Racial (7.716/1989) e o Código Penal para tipificar a injúria racial como racismo. Dessa forma, não há mais distinção entre as duas terminologias.
As punições são as mesmas e ambos os crimes são tratados com a mesma gravidade perante a justiça. Com a equiparação dos crimes, a pena foi agravada e agora é de reclusão de dois a cinco anos, além de multa, podendo ser aumentada de 1/3 até a metade se o crime for cometido em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação, ou ainda por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las. A pena também poderá ser aumentada para metade se o crime for cometido por duas ou mais pessoas.
Hoje, tanto a injúria como o racismo são crimes inafiançáveis e imprescritíveis. "É quando não se admite pagamento de fiança para a soltura do preso e que pode ser julgado a qualquer tempo, independentemente da data em que foi cometido, não sendo alcançado, portanto, pela prescrição, que fulmina o prazo da ação estatal para a responsabilização do autor do delito", esclarece a advogada Jaeni Azevedo.
Homofobia
Em agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu atos ofensivos praticados contra pessoas LGBTQIAPN como injúria racial. Em 2019, a Corte havia criminalizado a homofobia como forma de racismo. No entanto, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) entrou com recurso solicitando ampliação da decisão. Segundo a entidade, decisões tomadas por juízes em todo o país passaram a reconhecer a homofobia como crime de racismo somente nos casos de ofensas contra o grupo LGBTQIA . Pelas decisões, a injúria racial, que é proferida contra a honra de um indivíduo, não poderia ser aplicada com base na decisão da Corte. Com a decisão, quem for responsável por atos dessa natureza também não terá direito a fiança nem limite de tempo para responder judicialmente.
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