Tico Magalhães tinha 17 anos quando desembarcou em Brasília pela primeira vez. Vinha de Recife e decidira ficar uma temporada na capital para acompanhar a mãe, uma médica convidada para trabalhar no Ministério da Saúde. A ideia era ficar um ano e voltar para a capital pernambucana, na qual estudava para ingressar na universidade de publicidade e se embrenhava cada vez mais na cultura popular do maracatu. Tico tocava no Estrela Brilhante e, graças à amizade com mestre Salustiano, do Piaba de Ouro, começou a visitar o interior do estado, onde conheceu o maracatu de baque solto e o cavalo marinho. O universo popular já arrebatava o adolescente quando ele resolveu ficar em Brasília.
Foram muitas idas e vindas entre Recife e a capital nos primeiros anos, especialmente por conta das atividades com o maracatu. Numa dessas, Tico imaginou o mito do Calango Voador que daria origem ao Fuá do Seu Estrelo, uma brincadeira criada para Brasília com história que mistura referências do Cerrado e particularidades das manifestações nordestinas.
O Planalto Central teve uma força imensa no imaginário de Rodrigo Cavalcanti Magalhães. Impactado, ele criou toda uma mitologia que hoje conta com 80 figuras. "Vindo para cá, foi esse assombro com Brasília. E, em seguida, com o Cerrado", lembra.
A natureza rasteira, os rios, o céu sem fim, a terra vermelha, a seca que castiga e a chuva que traz de volta a vida capturaram Tico, hoje com 47 anos. "Acho que foi a força do lugar mesmo, essa força da natureza, isso tudo me assombrou", lembra. "A gente, na beira do mar, dá as costas para o país, para o interior. E essa coisa do céu, da cachoeira, do rio, do Cerrado são muito fortes. Ao mesmo tempo tem a história da cidade, essa cidade novidade. Era, para mim, uma cidade que ainda não tinha uma tradição e que, ao mesmo tempo, tinha muita tradição de muito lugar."
Início, meio e fim
Filho do Sol e da Terra, o Calango Voador nasceu no coração do Cerrado e ganhou asas para fugir de uma tromba d'água. Dividido em três partes, o mito começa com a criação dos mundos nos quais o personagem vai circular. Depois, vem o nascimento do Calango e a fundação de Brasília que, na mitologia, é uma invenção das próprias figuras que formam o mito. Tico começou a escrever a história nos primeiros encontros com o Cerrado, embalado pelo contato inicial com a região.
"Na primeira vez que vim, vendo o céu, o rio, começaram a chegar essas histórias e comecei a escrever. Dentro do terreiro começaram a vir alguns recados falando da brincadeira. E aí me toquei que tinha uma coisa preciosa ali, da brincadeira, que reverberava nas pessoas e espiritualmente", conta.
O Seu Estrelo e o Fuá do Terreiro tem uma particularidade que Tico trouxe do interior de Pernambuco e que é fundamental para que a brincadeira não seja um maracatu importado do Nordeste mas, sim, uma manifestação local: o samba pisado, um ritmo que dialoga com a própria natureza do Cerrado. "O samba é esse pulso que chama as figuras, liga a gente ao próprio Cerrado. O samba tem essa coisa, é um ritmo acelerado, traz essa coisa da chuva, das águas do rio, tem essa ligação com a própria natureza", avisa.
Àépoca, Tico já participava das atividades da casa, que hoje é o Centro Tradicional de Invenção Cultural, e, ao ser convidado para realizar uma oficina de maracatu, resolveu propor a criação do centro e de uma brincadeira fundada no mito do Calango Voador. "Falei para a galera que o maracatu estava em Recife e que tinha uma mitologia daqui. A gente começou a brincar", lembra. O mito tomou uma dimensão tão grande que hoje celebra 20 anos coroado com o título de patrimônio imaterial do Distrito Federal, enquanto Tico vai receber o título de Cidadão Honorário de Brasília. "Para mim, foi o maior orgulho ser da cidade oficialmente", garante.
Saiba Mais
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br