Prestes a completar seu ciclo como presidente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT), o desembargador José Cruz Macedo foi o convidado do Podcast do Correio. O magistrado fez um balanço da sua gestão, destacando temas como a violência contra a mulher e os atos antidemocráticos ocorridos em 8 de janeiro de 2023. A solenidade de posse da nova administração do tribunal será no próximo dia 22.
Aos jornalistas Adriana Bernardes e José Carlos Vieira, o presidente do TJDFT ressaltou que, apesar de o tribunal processar, julgar e condenar os autores de feminicídio, é preciso evitar a morte da mulher. “Esse é o nosso objetivo, e isso vem com a educação”, destacou Cruz Macedo. O desembargador também comentou sobre casos históricos julgados pela Corte e ações contra o racismo.
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Como foi tratada a violência contra a mulher durante sua gestão?
Foi uma das nossas prioridades. Essa questão precisa ser encarada com muita atenção e com muito trabalho. Todo o crime é uma tragédia, mas, no caso do crime praticado contra mulher, ele tem uma crescente, começa com a simples agressão, às vezes verbal, depois vem a ameaça, a agressão física, a lesão e até a morte da mulher. Temos uma preocupação muito grande com esse tema. Essa tragédia, no caso do feminicídio, alcança não só a mulher, que é vítima, mas os filhos, além de causar um estrago enorme nas famílias que, por muitas gerações, não vão se reconciliar. O autor do crime, geralmente o companheiro ou marido, acaba preso ou morto. No ano passado, por exemplo, mais de 90% dos autores de feminicídio foram presos ou morreram, ou por suidício ou em confronto com a polícia. Isso causa um mal-estar enorme na sociedade, é uma covardia muito grande contra a mulher e temos que trabalhar nesse aspecto, com a educação. O TJDFT tem processado, julgado e condenado esses autores, mas precisamos evitar a morte da mulher, esse é o nosso objetivo, e isso vem com a educação. Temos feito avaliações, estudos e pesquisas, e verificamos que 93% dos crimes de feminicídio são praticados por homens com mais de 39 anos. Isso demonstra que as novas gerações estão se inteirando do assunto, estão respeitando mais as mulheres, compreendendo a igualdade.
O recado que o tribunal deixa é que não há impunidade para os casos de feminicídio, correto?
Esse é um aspecto bem importante. O Poder Judiciário está respondendo essa demanda, quer dizer, não há impunidade para o feminicídio. Todos os autores de feminicídio ocorridos no DF foram localizados, até porque é mais fácil identificar o autor depois da prática de crime. Só que temos deficit antes de o crime ser consumado, por isso, precisamos que as pessoas colaborem mais com a polícia e procurem o Judiciário para fazer a denúncia. A mulher precisa fazer a denúncia, pois, na maioria das vezes, significa vida ou morte para ela. A grande maioria das mulheres que foram mortas no ano passado, sofreu violência doméstica e não denunciou. Então, fazemos um apelo para que as mulheres e a família façam a denúncia junto à autoridade policial, ao Ministério Público, ao Poder Judiciário e discando 197. Isso é fundamental.
Qual foi o grande desafio do senhor nesses dois anos à frente do TJDFT e qual ficará para quem assumir a gestão?
Tivemos vários desafios. Pegamos o tribunal no momento em que estava se encerrando a pandemia. Foi um momento muito difícil, as pessoas ficaram em casa e nós precisamos nos reinventar, passando a prestar jurisdição por meio do teletrabalho e, felizmente, nossos processos já eram todos virtuais, isso deu uma vantagem muito grande para o TJDFT. Mas foi uma situação difícil, não estávamos acostumados. A pandemia surpreendeu a todos. Só que posso dizer que o tribunal não parou, continuamos trabalhando e prestando a jurisdição desde o início. Quando não era possível presencialmente, fazíamos por meio do WhatsApp. Tivemos algumas prioridades, como a questão da saúde (na pandemia), que tratamos da forma mais séria possível, porque era o momento que estávamos vivendo. Orientamos para que as pessoas seguissem a orientação dos especialistas, dos médicos e daqueles que conheciam o assunto. Além disso, estimulamos todos, dos servidores aos magistrados, a se vacinarem, assim que o imunizante chegou, e passamos a dar essa prioridade.
Também tivemos o fatídico 8 de janeiro de 2023. Onde o senhor estava quando tudo aconteceu e quais são suas impressões sobre esse ato?
Foi um dos fatos mais repugnantes que eu assisti em Brasília. Cheguei aqui em 1979, no fim do regime militar, e houve (naquela época) uma manifestação muito preocupante na Rodoviária do Plano Piloto. Muitos carros foram destruídos, colocaram fogo nos veículos, nos ônibus e a população ficou apavorada. Foi um fato assustador. Diria que não tem outro atentado — depois da instalação da democracia — que se aproximou disso, como o de 8 de janeiro. Estava chegando em Brasília e fiquei impressionado com aquelas cenas na televisão. Parecia que a cidade estava abandonada por suas forças seguranças. Aquela invasão poderia ter sido contida. Se as forças de segurança tivessem se organizado e atuado do jeito que fizeram em 1º de janeiro (posse presidencial), esses fatos não teriam acontecido, essas pessoas seriam barradas na altura da Catedral.
Por que isso aconteceu?
Aquele fato que foi muito motivado por termos antecedentes, essas reuniões e acampamentos em frente às instituições militares não eram razoáveis, não se admite isso em instituição militar, os civis não poderiam ter acesso daquela maneira. Acho que houve um estímulo, nossas forças de segurança se omitiram e não conseguiram deter. Foi uma agressão à democracia, pois atingiu o coração dos poderes da República. O que foi feito naquele dia é algo só para se lastimar, mas é preciso haver uma resposta e uma responsabilização exemplar. A democracia é o que temos de mais importante. Lembro que participei de um dos momentos mais importantes da minha vida, que foi a Assembleia Nacional Constituinte. Naquele momento, o Brasil se modificou. Sou de uma geração que votou pela primeira vez para presidente da República, em 1989.
O senhor, como brasiliense de coração, sentiu como se estivesse invadido a nossa casa?
Foi uma agressão muito grande. Fiquei indignado, não queria acreditar naquilo que eu estava vendo. Nunca imaginei que Brasília pudesse ser atingida daquela maneira. Parece que as pessoas estavam com ódio das instituições. Mas é evidente que o nosso processo de transformação é por meio do voto, é o que temos de mais importante. O Brasil tem desigualdade em muitos pontos, mas na questão do voto, todos somos iguais. Essa é a grande conquista da democracia e por isso temos que respeitar.
Qual foi a repercussão desse ato para o TJDFT?
O ministro (do Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes nos delegou a realização de todas as audiências dos presos no 8 de janeiro. O TJDFT fez uma grande organização de seus magistrados e realizou mais de 1.400 audiências de custódia, ao lado de juízes federais, o Ministério Público, promotores e procuradores. Realizamos todas as audiências em tempo recorde, mas foi muito trabalho para o TJDFT e também mais um desafio que superamos.
Como o tribunal trabalha para dar celeridade aos processos que chegam?
O nosso tribunal é considerado o mais célere (do país). Muitos processos de outros estados vêm para cá, pois é rápido e também porque as custas são as mais baratas da Federação. Tem estado cobrando 13 vezes mais do que o nosso valor de custo. Aqui, os processos duram, em média, se tirarmos os processos de execução, em torno de dois anos. Só que existem aqueles que são julgados em até três meses. Em outros locais, a média é bem mais alta, chegando a mais de cinco anos. No nosso caso, colocamos como prioridade manter o cumprimento das metas do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Começamos a cumpri-las em 2014 e, como o presidente, deixei claro que iríamos cumprir todas as metas e fizemos isso. Julgamos mais processo do que recebemos e essa é a grande meta do CNJ. Foram mais de 339 mil processos julgados. Só que isso exigiu muito trabalho, porque os magistrados têm que se dedicar e os servidores também. Hoje, o nosso trabalho também é para que os processos não cheguem ao tribunal. Existem outras formas de resolver problemas, como a conciliação e a mediação. São iniciativas que temos e que têm ajudado muito na redução dos nossos processos.
Poderia dar um exemplo desse tipo de conciliação?
A pessoa que chega é encaminhada para um conciliador que anota os fatos e chama a outra parte, reúne e discute o assunto. Mais de 70% dos casos se resolvem ali mesmo: faz um acordo, o Ministério Público concorda e o juiz arquiva o processo. Essa é uma forma de negociação pré-processual, não chega a existir um processo. Há um registro, para efeito de estatística, mas o processo não é instaurado. Isso é uma economia grande, porque um processo custa caro, então, essas formas alternativas de solução de conflitos terão de ser cada vez mais efetivadas, porque não podemos dar conta de tantos processos. Diria que o volume de processos é quase desumano. Inclusive, a conciliação agrada muito mais as partes do que um processo.
Tem um flagelo na sociedade que é o racismo. Como o tribunal age no aspecto da educação, mas também da punição, em relação a esse tema?
Esse é outro assunto doloroso do Brasil. Temos uma tradição que vem da época de escravidão, com a distinção absurda em relação à raça. O país ainda está devendo muito, precisamos corrigir essas distorções e o TJDFT atua com bastante rigor nos julgamentos dos processos de racismo. Temos um comitê específico para acompanhar essa questão e faz parte da nossa governança. Me empenhei muito, durante a nossa administração, e isso é um aspecto que consideramos muito importante.
A primeira sentença do TJDFT, assim como Brasília, está prestes a completar 64 anos. Poderia comentar um pouco sobre essa memória?
O primeiro juiz criminal Souza Neto recebeu quatro processos e escolheu um para decidir logo, que era uma denúncia de um furto de um ferro elétrico que, naquela época, era um bem que tinha algum valor. Ele julgou esse processo e absorveu o réu, entendendo que o acusado era uma pessoa simples e humilde, porque ele pegou o ferro e foi vender ao dono do objeto. Quando o comerciante viu ele chamou a polícia e prendeu o réu. O juiz entendeu que ele foi muito sincero, (o acusado) disse que pegou o ferro de uma pessoa que estava precisando comprar uma injeção, pois estava com o pé ferido e tinha pedido para vender, mas que não foi ele que tinha furtado. O juiz considerou as razões do acusado e, assim, a primeira sentença de Brasília foi de absolvição.
Também tem a história de um acidente que ocorreu na W3 e que envolveu uma figura conhecida por todos, brasilienses, brasileiros e no mundo…
Foi o Oscar Niemeyer. Ele atropelou um ciclista na W3. O arquiteto contou que estava dirigindo e, de repente, uma pessoa que vinha na contramão numa bicicleta, se chocou contra o carro dele. A instrução do processo é que ele seria o responsável porque não observou o ciclista, mas, posteriormente, a perícia demonstrou que o ciclista vinha na contramão e tinha bebido. Localizaram várias testemunhas que declararam isso e ele acabou absolvido. Mas foi um fato significativo, porque Niemeyer, realmente, era uma pessoa incrível e bastante conhecida.
Tivemos um caso trágico, nos anos 1970, que foi a morte da menina Ana Lídia. Até hoje ele segue inconclusivo…
As investigações apontavam para várias pessoas importantes do Brasil. Foi um processo de Justiça muito difícil de lidar, tinha muita interferência, muitas críticas à perícia. As investigações ficaram muito prejudicadas e muitos dizem que esse caso, realmente, é representativo de um processo de impunidade, porque nem todos os autores foram localizados. Não estava aqui ainda, mas li muito sobre o assunto e foi um processo sofrido. Todos os magistrados que atuaram nesse caso falam da dificuldade que tiveram. Infelizmente, o processo não conseguiu identificar todos os participantes do assassinato.
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