Moradores e comerciantes da Asa Norte, Asa Sul, Noroeste e Sudoeste estão organizados em um grupo de trabalho (GT), denominado Brasília capital segura, para cobrar das autoridades soluções para problemas relacionados ao crescimento da população em situação de rua. O grupo se reúne nesta segunda-feira, às 19h, no Senac da 903 Sul. Conforme documento divulgado pelo GT, que conta com 610 participantes, a intenção é que "o governo providencie estrutura adequada para as pastas que cuidam do assunto, para que essas tenham condições de prover dignidade, tratamento e acompanhamento da população que efetivamente se encontre em situação de vulnerabilidade social e, ao mesmo tempo, devolva segurança aos cidadãos que pagam os impostos".
O grupo pretende propor medidas e a implementação de políticas públicas para reverter o que classifica como "falta de segurança e impactos negativos nas áreas de saneamento, limpeza urbana, proteção ambiental e saúde pública". A servidora pública Cíntia Correia atua como assessora jurídica da Associação de Moradores do Noroeste (AmoNoreste), que inspirou a criação do novo grupo. Ex-moradora da Asa Norte, ela contou ao Correio que as pessoas em situação de rua sempre estiveram por ali, mas que, agora, o número tem se tornado cada vez maior. Cíntia conta que muitos moradores "insistem em ajudar" com alimentos e até mesmo dinheiro. "Sem discurso de higienismo, queremos que a qualidade de vida, a segurança e o plano urbanístico de Brasília sejam mantidos. Nós aguardaremos, caso não haja possibilidade de acolhimento (da população em situação de rua) agora, mas seguiremos cobrando", declarou.
O grupo trabalha em diversas iniciativas para que a qualidade de vida dos moradores da capital seja melhorada, mas, atualmente, em razão do alto número de pessoas vivendo em situação de rua por todo o DF, tem focado a atuação nesse aspecto. Diretor da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), Guto Jabour faz parte do GT e, como empresário, testemunha diariamente os desafios que a presença de pessoas em situação de rua tem imposto aos estabelecimentos. "Reconhecemos os avanços alcançados até agora em nossa cidade, principalmente com a divulgação do Plano de Trabalho coordenado pela Casa Civil para o acolhimento das pessoas em situação de rua", afirma. "Contudo, é inegável que Brasília precisa evoluir substancialmente para restabelecer o patamar de segurança pública e zeladoria que outrora a destacava e do qual nos orgulhávamos", pondera.
Segundo Jabour, há um grande número de reclamações de assédio por parte desta população nos arredores dos estabelecimentos, especialmente nas asas Sul e Norte. "Tais condições não só afetam a qualidade de vida de nossos clientes em ambientes abertos, como também prejudicam a imagem e a viabilidade econômica dos negócios locais, além de ferirem a segurança dos trabalhadores que precisam vir ao Plano Piloto para buscar seu sustento e são constantemente assaltados", destaca. "É imperativo que unamos forças para criar soluções inovadoras e efetivas que atendam às necessidades da população vulnerável, ao mesmo tempo em que asseguramos um ambiente seguro e acolhedor para todos que vivem, trabalham ou visitam nossa capital", finaliza.
Segurança
Segundo nota divulgada pelo GT, o principal e mais urgente objetivo do grupo, neste momento, é que as autoridades possam identificar e afastar das ruas pessoas infiltradas que se aproveitam da proteção dada pelo Estado aos que se encontram em real vulnerabilidade para cometer diversos tipos de crimes, entre eles, o tráfico de drogas. Na Asa Norte, os relatos são de que há pessoas que atuam de maneira criminosa. Crystyna Lessa, comerciante e prefeita comunitária da 713 Norte, relata que arrancaram do chão 30 metros de cabos de alimentação com o intuito de deixar algumas áreas mais inseguras. "Nós, moradores, pagamos um serralheiro para soldar os cabos dentro dos postes e evitar roubos", diz.
A moradora relata ainda que há um ponto de tráfico nos arredores da 710 Norte e que isso tem deixado todos apreensivos. "Sabemos que existe a população de rua que quer melhores condições de vida e essa nós vamos defender. Mas tem também usuários de drogas, traficantes e delinquentes que usam a situação de rua e a vulnerabilidade para cometer crimes. Este caso é de segurança pública", destaca.
Crystyna, que também é proprietária de uma loja de tecidos e aviamentos na Asa Norte, já teve o estabelecimento invadido e foi ameaçada. "Alguns deles são agressivos. Sei que estão desamparados e vulneráveis, mas essa situação também tem deixado nós, moradores e comerciantes, em situação vulnerável", lamenta.
O prefeito da 303 Sul, Alexandre Pina, descreve um cenário caótico na região. "O pessoal joga lixo no chão, defeca nas calçadas, pega garrafas e fica quebrando no chão, pega galhos de árvores e fica batendo nos muros", relata. "Eles têm os mesmos direitos que todo brasileiro tem, mas não estão recebendo. Pagamos impostos, taxa de limpeza, queremos cuidar do nosso quadrado", argumenta.
"Precisamos de um cronograma de quais áreas receberão atuação do GDF e qual será a destinação que essas pessoas terão. Nós queremos que elas desocupem nossa área, mas queremos também que elas tenham qualidade de vida, salubridade e dignidade", conclui.
Plano
O Governo do Distrito Federal (GDF) anunciou, em 14 de março, o Plano Distrital de Acolhimento das Pessoas em Situação de Rua. Segundo o GDF, o projeto é alinhado com o do governo federal e foi analisado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Gustavo Rocha, secretário-chefe da Casa Civil, destacou que o plano envolve o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Defensoria Pública e Supremo Tribunal Federal (STF).
O plano conta com sete eixos de atuação envolvendo diversas secretarias e órgãos do GDF: assistência social; saúde; ações de zeladoria (para desobstrução de áreas públicas); cidadania, educação e cultura; habitação; trabalho e renda; produção e gestão de dados. O documento, no entanto, não foi disponibilizado. O secretário da Casa Civil, Gustavo Rocha, explicou, na ocasião, que, para concluir o texto, o GDF aguardava as contribuições do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT).
"A gente fica numa situação que, de um lado, temos os direitos fundamentais dessas pessoas. E temos também que conciliar com os direitos da sociedade como um todo. Então, é um equilíbrio que não é fácil de fazer", declarou o secretário da Casa Civil, Gustavo Rocha. No lançamento, de acordo com o DF Legal, havia 74 pontos de ocupações no DF. Esses locais se dividem em três formas de ocupação: mendicância; acampamentos sazonais; e concentração de catadores de materiais recicláveis.
O Correio percorreu alguns desses pontos e ouviu pessoas em situação de rua. Os relatos publicados em reportagens vão desde o desemprego e a falta de oportunidade a histórias de pessoas que vieram para a capital em busca de uma vida melhor ou moram no Entorno e vêm para Brasília em busca de ajuda.
A primeira ação foi realizada em 15 de março na 903 Sul, onde foram realizados 53 atendimentos a pessoas em situação de rua que estavam instaladas nas proximidades do Centro Pop. Foram removidas 26 estruturas que estavam obstruindo calçadas e vias públicas. A reportagem do Correio no local ontem e havia uma caminhonete da DF Legal e quatro agentes, monitorando 24 horas por dia.
A Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes) informou ontem que realizou, durante a última semana, encontros de sensibilização diários com as pessoas em situação de rua que estão acampadas na QS 3 de Taguatinga. "Com o apoio das equipes do Serviço Especializado em Abordagem Social (Seas), foram ofertados serviços socioassistenciais e acesso a demais políticas da assistência social e de outras áreas, como saúde. A Sedes disponibilizou vagas de acolhimento institucional para os assistidos", disse a pasta, em nota.
Três perguntas para
Izis Morais Lopes dos Reis, assistente social do MPDFT, doutora em antropologia social pela Universidade de Brasília
O contingente de pessoas em situação de rua tem aumentado nas ruas de Brasília? Por quê?
A pandemia escalonou o problema a ser enfrentado, com aumento da quantidade de pessoas desempregadas e que precisaram sair de suas casas pela perda de renda. A instabilidade financeira, causada pelas inserções em atividades precárias, também contribui para que as pessoas acabem nas ruas. Ou seja: as pessoas em situação de rua já estavam com seus direitos violadas (habitação, direito à cidade, assistência social, emprego e renda, por exemplo). A precarização da vida com a crise econômica e social piorou esses índices. Atualmente, vemos o reflexo de anos de descaso com essa parcela da população, o que inclui a falta de políticas públicas eficazes de assistência social e de habitação.
Como conciliar a garantia dos direitos das pessoas em situação de ruas com a garantia dos direitos das pessoas que reclamam da presença delas em quadras comerciais e residenciais?
Os direitos de pessoas em situação de rua são direitos da sociedade civil. Não há conciliação necessária, porque não são direitos opostos. Ao contrário. O que existe hoje é a flagrante violação dos direitos de toda a sociedade quando uma parcela imensa de pessoas não possui acesso a direitos básicos, como moradia, alimentação, emprego e renda. Além disso, as pessoas em situação de rua são alvos de violências institucionais quando buscam atendimentos ou quando precisam transitar pela cidade. A cidade é local para todos, e a reclamação não deveria ser para "retirar" ou por causa de "incômodos", mas para que o Estado garantisse abrigo, alimentação, saúde e programas de reinserção social para todos. Quando a vulnerabilidade social é atacada efetivamente, melhoramos a vida para todas as pessoas, não só para aquelas atendidas diretamente.
O GDF anunciou um grupo de trabalho para atuar no problema das pessoas em situação de rua no DF. De que forma o governo pode atuar de forma mais eficiente?
Como a questão é multicausal, há necessidade de participação de diferentes secretarias de estado, para garantir direitos fundamentais. Também é relevante que pessoas em situação de rua tenham acesso à Justiça. Ou seja, há, sim, relevância na criação de um grupo de trabalho intersetorial, com diferentes pastas. Entretanto, há excessiva demora na atenção do poder público a essa parte da população. Temos dados consistentes desde 2011, quando foi realizado o primeiro censo de população de rua no DF. Desde então, poucos serviços foram criados ou melhorados para atendimento dessas pessoas.
Saiba mais
Dados divergentes
O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania concluiu que o DF tem 7.924 pessoas em situação de rua. A Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes) contestou o dado. De acordo com a pasta, o ministério usou dados do Cadastro Único, de dezembro de 2022, que estava desatualizado. Conforme a Sedes, o GDF trabalha com o estudo do IPEDF, que fez uma pesquisa de campo, em 2022, e chegou a um total de 2.938. A partir de 2024, o estudo será bianual. O próximo será realizado este ano.
APDF 976
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), estipulou, em julho de 2023, que o governo federal, estados, municípios e o DF promovessem ações para promover melhorias nas condições de vida das pessoas em situação de rua. A determinação, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976, também proibiu a remoção forçada dessas pessoas das ruas.
Colaboraram: Letícia Guedes e Malcia Afonso.
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